Que importância tem um nome? Não era nada que Alice já não perguntasse do outro lado do espelho. Baptista, Silva? Que importância tem um nome?
Uma vez falei aqui de Baptista, Baptista Pereira, o Quim dos Mouchões do Tejo. Soeiro Pereira Gomes e tudo e tudo.
Baptista Pereira venceu a Mancha: ou seja, venceu-se a si próprio. Ele e as circunstâncias misteriosas de um mar com segredos como todos os mares.
No dia 20 de agosto de 1957 chovia sobre a Mancha.
Não estava nevoeiro, por isso o Continente não estava isolado.
Havia um frio de expectativas no Cais de Gris Nez.
Estava lá Joaquim Baptista Pereira. Mas não se fez à água. Um mistério também ele dentro do mistério da Mancha…
Não era o seu dia. Não era a sua hora. Não era sequer a sua circunstância.
Mas, lá está, que importância tem um nome?
José da Silva, natural da Madeira, de Santa Maria Maior. Chamavam-lhe o Saca, se é que, para vocês, isso tem importância.
«As coisas não têm nomes», disseram a Alice que abria caminho pelo País do Tabuleiro de Xadrez antes de chegar ao Bosque Escuro.
Alice descobriu por si própria que nada tem nome.
José da Silva era uma espécie de Cavaleiro Branco, lado a lado com Baptista Pereira, o favorito doente. O Cavaleiro Branco falava e Alice ouvia: «O nome da cantiga é Os Olhos de Haddock!». E Alice perguntava, inocente: «Oh! Esse é o nome da cantiga, não é?» E ouvia por seu lado: «Não. Tu não compreendes. Isso é o que se chama ao nome. O nome realmente é o Homem Velho Velho».
Em 1955, o Saca tinha trinta e dois anos. Não era, definitivamente, um homem velho velho. Com um nome: José Faria. Nem sempre são os vencedores que açambarcam a história. Há lugar para vencidos que, na verdade, se vencem a si próprios.
O Saca foi um deles.
Não se pode esquecer o Saca. Ele estava lá, na Mancha que Baptista Pereira ganhou certa vez com a imponência de um tritão das lendas.
Havia um vento que soprava de noroeste. Diziam os especialistas que iria ajudar os nadadores na primeira parte do percurso.
O mar, ali, à sua espera.
Um mundo infinito de curiosos. Curiosos e ansiosos.
Os nadadores esfregavam os corpos com lanolina: três quilos para cada um. Para manterem uma certa temperatura do corpo, para deslizarem mais facilmente nas águas selvagens.
O céu escurecendo como num presságio.
A chuva caindo, caindo, cada vez mais densa, mais temível.
Um foguete azul subiu na vertical com os estalido.
Vinte e um homens atiraram-se às ondas. Ou melhor: quinze. Entre os homens, havia seis mulheres. O brasileiro Walter da Silva desistiu pouco depois. Logo em seguida, foi a vez do indiano Himadri Shekar.
O Canal não gosta de ser invadido.
A Inglaterra conserva bravamente a sua isolação de ilha brusca.
José da Silva estava habituado ao mar do Lido, ali à saída do Funchal, aos penhascos da sua terra perdida na imensidão atlântica, às ondas tumultuosas. Já fora daí até ao Paul do Mar, já atravessara da Ponta de São Lourenço até ao Ilhéu Chão, nas Desertas.
Ele era, de certa forma, um filho da água.
Os nadadores já se tinham afastado oito quilómetros da costa francesa.
O líder era Kenneth Wray, um inglês. O Saca ia na sua peugada. Braçada larga, segura.
O mar cada vez mais crespo. Enfuriando-se contra o atrevimento humano.
70 braçadas por minuto: contavam os homens que o seguiam no barco de apoio.
A Mancha já fizera os seus estragos. As desistências multiplicavam-se.
Eram 13 horas e 30 minutos segundo o Meridiano de Greenwich.
Os pulmões de José da Silva anseiam por ar. Abre a boca num desespero de oxigénio, a água entra também aos borbotões.
Há barcos desaparecidos. Um nadador perdido. Iniciam-se buscas aflitivas.
13h30 minutos.
O Saca tem excesso de água salgada no estômago, sofre desumanamente. Quer resistir mas há, nesse momento, algo telúrico que lhe tolhe os movimentos.
Não mais 70 braçadas por minuto.
Nem mais uma braçada apenas.
Mais para Oeste, ligeiramente mais para Oeste, o inglês Wray está a seis milhas de casa.
José da Silva sobe tristemente para o barco de suporte.
Não será Baptista Pereira.
Mas que importância tem um nome num mar cheio de afogados sem nomes…