«Simplesmente por ti»

Esta dedicatória – «Simplesmente por ti» – cruzou-se no meu caminho em Portimão, num mural de grafitos, patrocinado pela Câmara Municipal. Trata-se de uma expressão que joga com o nome da cidade e com o público a que se destina.

«Simplesmente por ti» é uma dedicatória a quem passa e é também uma expressão que poderíamos dedicar àqueles de quem gostamos, àqueles por quem tomamos certas decisões, àqueles por quem realizamos determinados atos, como se fosse verdade o que postula Nuno Júdice: «No fundo, as relações entre mim e ti / cabem na palma da mão».

Dedicar a vida a alguém é sentir por essa pessoa um amor muito grande, seja esse amor por um filho, um companheiro, um amigo, ou outra pessoa que, para nós, por qualquer motivo, é especial. E há poucas coisas mais importantes, na esfera dos sentimentos, do que sentirmo-nos especiais para alguém. Infelizmente, algumas pessoas não têm a felicidade de se sentirem assim e passam pela vida sem essa felicidade. Outras há, porém, que vivem a vida inteira a sentirem-se únicas para muitas outras pessoas – primeiro, para os pais; depois, para um professor ou para um colega; mais tarde, para um amigo, para uma pessoa amada, para os filhos, para os avós… São pessoas especiais, capazes de congregar outros à volta delas, de os atrair pelas qualidades, pelo sorriso, pela generosidade, pela gratidão, pelo dom da alegria que irradiam. Penso que todos conhecemos pessoas assim, que todos identificamos este perfil. Mas, no fundo, como pergunta Carlos Drummond de Andrade: «Que é ser? / É ter um corpo, um jeito, um nome? / Tenho os três. E sou?». É esta pergunta que nos faz equacionar o nosso lugar no mundo, perante nós próprios e perante os outros.

Mas, na realidade, não é preciso ser verdadeiramente singular e especial para se ser único. Cada um de nós é, à sua maneira, especial. Como escreveu Sophia: «Eis-me / Tendo-me despido de todos os meus mantos / (…) / Para ficar sozinha ante o silêncio». E apenas depende de cada pessoa, sozinha no seu silêncio, fazer com que os outros vejam as suas qualidades, as reconheçam e as valorizem.

Fazer algo «simplesmente por ti», simplesmente por alguém, é a maior dedicatória que se lhe pode oferecer, é dizer-lhe que se fez ou pensou algo apenas por essa pessoa, individualizando-a de todas as outras.

Valorizarmos os outros e sentirmo-nos valorizados é uma das sensações que mais consolidam a nossa personalidade e lhe garantem a estrutura para que possa enfrentar os problemas com que diariamente nos confrontamos. Infelizmente, nem todas as pessoas têm esta felicidade. Algumas há que não são valorizadas – seja pela cor, pelo sexo, pela religião, pelas crenças, ou pelo infortúnio de nascer em determinado país ou em determinadas condições.

O neuropsiquiatra Boris Cyrulnik, que trabalhou com crianças em orfanatos na Roménia, com crianças-soldados na Colômbia e com vítimas de genocídio no Ruanda, desenvolveu o conceito de «resiliência»: a capacidade humana de enfrentar dificuldades na vida. Os seus estudos demonstraram que crianças institucionalizadas e fortemente perturbadas, vítimas de atrofia em certas zonas cerebrais, um ano após viverem com uma família de adoção, já eram capazes de progressos significativos e a análise dos seus cérebros demonstrava a sua recuperação. Estes estudos apelam, no fundo, à nossa inabalável crença na capacidade do ser humano para se reinventar, e à certeza de que é o afeto e as emoções que movem a existência humana.

Importa, pois, reconhecer os outros e valorizá-los, conscientes de que, como diz Ary dos Santos: «Em todos dorme / A humanidade que nos foi imposta. / (…) / É por sermos iguais que nos esquecemos / Que foi do mesmo sangue, / Que foi do mesmo ventre que surgimos». Mas importa nunca reconhecer os outros apenas por caridade…

Maria Eugénia Leitão, Escrito em parceria com o blogue da Letrário, Translation Services