«Ele vai ficar para sempre associado à mentira sobre Camarate». Foram frases como esta que levaram Francisco Pinto Balsemão a processar o seu primo, Alexandre Patrício Gouveia, e Joaquim Vieira, autor da biografia Francisco Pinto Balsemão, publicada pela editora Planeta, onde surgem estas afirmações. A informação foi confirmada pelo próprio Joaquim Vieira ao SOL. Também a Procuradoria Geral da República confirmou a existência de um inquérito, que se encontra em investigação. Não há arguidos constituídos, adiantou fonte oficial.
Nesta obra, o irmão de António Patrício Gouveia, chefe de gabinete de Sá Carneiro e uma das sete vítimas mortais do Caso Camarate, alega que Balsemão poderia ter investigado o caso, mas recusou-se a fazê-lo. Como Joaquim Vieira explicou ao SOL numa entrevista aquando do lançamento da biografia, é na sequência deste acidente que o dono da Impresa se torna líder do Governo: «Foi um acaso histórico. Ele não estava talhado para ser primeiro-ministro. Sá Carneiro morre no acidente de Camarate e Balsemão é o número 2 do PSD. O número 2 do Governo era Freitas do Amaral, só que este último dirigia o partido minoritário da coligação AD, por isso coloca-se a questão de quem deveria suceder a Sá Carneiro. Faria sentido que fosse o líder do partido maioritário. Balsemão ascende assim a líder do PSD e torna-se automaticamente primeiro-ministro».
Para a realização desta biografia, Joaquim Vieira (que chegou a ser diretor-adjunto do Expresso) entrevistou cerca de 60 pessoas e o próprio Balsemão deu-lhe autorização para «consultar todo o tipo de documentos que necessitassem da sua autorização, como a ficha da PIDE, a ficha militar, as notas do liceu e da faculdade», como Vieira explicou ao SOL.
Num dos testemunhos recolhidos, Alexandre Patrício Gouveia, que foi Adjunto para os Assuntos Económicos no Gabinete do primeiro-ministro quando Balsemão era o líder do Governo e integrou a comissão parlamentar de inquérito à tragédia de Camarate, defendeu que, na altura, o patrão da SIC deveria ter tido uma postura mais interventiva e não assumir que se tratou de um acidente sem exigir uma investigação profunda ao que se passou naquela quinta-feira, dia 4 de dezembro de 1980. «O que era lógico era que o Francisco Balsemão estivesse na primeira linha para investigar o que aconteceu, dado que era primo do meu irmão. Mas boicotou a investigação durante 30 anos. Pôs de maneira infame o Expresso a defender a tese do acidente. (…) Não vou dizer qual foi a razão. Tenho uma suspeita, mas não exponho teorias que não possa provar. Mas tem de ter uma explicação forte, que ele conhece. Ele vai ficar para sempre associado à mentira sobre Camarate», afirmou Alexandre Patrício Gouveia, citado na biografia escrita por Joaquim Vieira.
Gouveia diz que não tem dúvidas do envolvimento da CIA no Caso Camarate e acredita que Balsemão foi informado pela agência de inteligência dos Estados Unidos da América do que se iria passar.
«A hipótese teórica é que o Balsemão, no dia do atentado, já sabia que estava em preparação a operação da CIA. (…) A minha cunhada [Margarida Gouveia], viúva do meu irmão, interpelou-o sobre Camarate. Mas ele desabafou: que estava farto de Camarate e não ia falar mais sobre o assunto. Terá dito também que Camarate foi um acidente», afirmou.
O almoço com Kissinger
Em 2002, Francisco Pinto Balsemão admitiu ter participado num almoço com o ex-secretário de Estado dos Estados Unidos da América, Henry Kissinger, depois de, uma semana antes, ter dito que não se tinha encontrado com o governante norte-americano.
«Apesar de continuar a não me recordar de ter estado com ele, a minha mulher, que tem melhor memória do que eu, garante-me que voltámos do Alvor [onde ela me tinha acompanhado], no sábado, 15 de novembro, a tempo de eu participar num almoço que o primeiro-ministro, dr. Francisco Sá Carneiro, oferecia ao Dr. Kissinger», lê-se numa carta enviada aos deputados, citada no site do jornal Público.
O antigo espião da CIA, Oswald Le Winter, tinha sido ouvido em audições anteriores e afirmou que «aos olhos de Henry Kissinger», Sá Carneiro «era um inimigo». Le Winter afirmou que a oposição do então primeiro-ministro e de Adelino Amaro da Costa, antigo ministro da Defesa, ao facto de Portugal ser usado como ponto de passagem para fornecimento de armas americanas para o Irão poderá ter estado na origem do Caso Camarate. No entanto, Le Winter confessou não ter provas sobre o envolvimento de Kissinger na tragédia.
A ‘maldição’ de Camarate
Esta não é a primeira vez que Francisco Pinto Balsemão recorre aos tribunais para lidar com questões relacionadas com Camarate.
Augusto Cid, conhecido cartoonista, autor do livro Camarate e, tal como Alexandre Patrício Gouveia, membro da comissão parlamentar de inquérito, também foi processado pelo antigo primeiro-ministro. O tribunal acabou por dar razão ao dono da Impresa e o cartoonista foi obrigado a pagar alguns milhares de euros ao ex-líder do PSD.
Numa entrevista em dezembro de 2016, Cid contou ao SOL que Pedro Amaral, ex-inspetor da Polícia Judiciária responsável pelo relatório feito na altura, não descartou a hipótese de atentado, mas sofreu pressões para não avançar com essa teoria: «No relatório que fez, o Pedro Amaral pôs duas teses: a de acidente e de atentado. E escreveu lá claramente: ‘Perguntado a um técnico da Aeronáutica Civil o que queriam dizer esses papéis espalhados, ele disse que, se se provar que esses papéis pertenciam ao avião, temos um atentado em mãos’. Isto foi parar ao diretor adjunto da Judiciária, que o chamou e lhe disse assim: ‘O senhor inspetor vai ter de rasgar isto. Aqui só pode haver uma tese: acidente’. O Pedro Amaral teve uma coragem enorme, e disse: ‘Faça como quiser. Eu não tiro uma vírgula, foi o que eu vi e os meus homens viram’».
Notícia atualizada: O SOL tentou contactar Francisco Pinto Balsemão para obter uma reação, mas, até ao fecho desta edição, não tinha obtido resposta. Entretanto, o dono da Impresa deu uma resposta conjunta a vários órgãos de comunicação: “É triste e lamentável que, tantos anos depois, ainda haja quem tome atitudes tão vis e faça acusações tão infames, cuja falsidade já foi, aliás, mais do que uma vez, reconhecida pelos tribunais”.