Chelsea Manning passou sete anos numa prisão de segurança máxima e podia ter lá passado muitos mais. Nesse período tentou suicidar-se pelo menos uma vez, iniciou o processo de mudança de sexo com o qual a prisão não soube lidar e que a manteve vários meses na solitária. No exterior, enquanto isto se desenrolava com contornos mais ou menos dramáticos, o mundo não deixou de discutir os méritos das suas ações. Manning, afinal de contas, é a figura fraturante por excelência nos Estados Unidos. Apenas a igualam Donald Trump, Edward Snowden e a pergunta “Beatles ou Rolling Stones”?
Por um lado, sobretudo liberal, é encarada como uma heroína da transparência por ter provocado a maior fuga de informação na História dos Estados Unidos e transferido centenas de milhares de documentos para a Wikileaks – quando ainda era militar e se chamava Bradley, elevando-a ao estatuto de gigante, revelando as práticas abusivas das guerras americanas no Iraque e Afeganistão e colocando em perigo – possivelmente até levando à morte – agentes e informadores no terreno. Para a maioria dos conservadores, Manning é uma traidora, uma ex-militar sem honra e sem hipótese de respeito, e a pena comutada por Barack Obama, três dias antes de abandonar a Casa Branca, não a absolve dos crimes pelos quais foi condenada a 35 anos de prisão, em 2013.
Manning não está à espera que o debate acabe. Desde que saiu em liberdade, na primavera, fez o contrário de desaparecer do radar. Defendeu as suas credenciais de ativista LGBTI, apareceu em capas de revistas, publicou colunas de opinião e, apesar dos constrangimentos do seu processo, vem discutindo também as políticas de vigilância eletrónica e tentacular dos EUA. Este fim de semana, abrindo uma nova encarnação, apresentou parte dos documentos necessários para se candidatar ao cargo de senador pelo estado de Maryland, de onde é natural.
Concorre, como explica no vídeo de apresentação, como uma candidata antissistema, recusando-se a dar a mão à mesma maioria republicana que, como defendia há meses no “Guardian”, se recusou a conceder o mínimo a Obama quando este era presidente – o ex-presidente, defende Manning, ofereceu-lhe o seu “despertar político” com a vitória de 2008, mas, em última análise, fracassou nas promessas progressistas. “Não precisamos de mais ou melhores líderes”, afirma Manning nas imagens em que apresenta a candidatura, que alternam entre estática e gravações dos protestos racistas em Charlotte, ou de manifestações pela manutenção do Obamacare. “Precisamos de alguém que consiga lutar”, prossegue. “Já não precisamos deles.”
Manning acentua o último “eles” como quem designa uma classe indesejável de pessoas. Mesmo para ela, que foi violentamente excluída do sistema – a ONU denunciou o isolamento da sua detenção – o tom aproxima-se do populismo do seu principal adversário: Donald Trump. Será ele a determinar as suas hipóteses de sucesso e a de outros candidatos progressistas e até antissistema. Em novembro, nas primeiras eleições locais desde que Trump foi eleito, dezenas de principiantes liberais conquistaram cargos públicos um pouco por todo o país, incluindo a primeira mulher transgénero.
Manning, no entanto, enfrenta obstáculos difíceis e não apenas graças à sua reputação fraturante. O cargo a que se candidata pertence já a um democrata Benjamin L. Cardin, que em 2012 conseguiu 75% dos votos e de quem se espera uma reeleição fácil em novembro, data das eleições intercalares que podem alterar a balança de poder em Washington, hoje por completo nas mãos dos republicanos. Mas a sua exposição mediática pode ajudá-la. “Donald Trump é presidente, a Oprah Winfrey é a candidata da frente para os democratas em 2020, por que raio é que Chelsea Manning não pode ir para o Senado?”, lança, no “Washington Post”, Todd Eberly, professor de Ciência Política na Universidade de Maryland.