Ocupas querem transformar prédio em polo de “habitação de urgência”

Um conjunto de ativistas ocuparam um prédio na Rua Marques da Silva, em Arroios, em setembro do ano passado. Desde então têm angariado verbas para avançarem com obras e renovarem o prédio. O i foi conhecer esta ocupação por dentro. Um dos planos é criar um polo de “habitação de urgência” no coração da cidade. 

À primeira vista parece mais um entre tantos prédios ao abandono em Lisboa mas, lá dentro, a realidade é bem diferente. Ao lado da porta de entrada, um cartaz dá as boas vindas: “Assembleia de Ocupação de Lisboa (AOLX)”. Várias pessoas mexem em ferramentas e colocam massa nas paredes. À esquerda, mesmo na entrada, vê-se já um pouco do resultado de tantos outros dias de trabalho coletivo para se recuperar a casa: uma parede arranjada e já pintada de branco. Ao cimo da escadas, duas jovens olham-nos, sorrindo: Maria e Joana (nomes fictícios).

“A casa foi ocupada por um grupo de pessoas que já se conheciam e que queriam fazer alguma coisa”, explica Maria, estudante de Escultura de 23 anos. Não participou na ocupação desde o início mas, quando visitou a casa, foi quase amor à primeira vista. “À primeira percebi que curtia”, confessa. 

O grupo de ativistas que ocuparam a casa têm perspetivas muito diferentes, mas todos têm sentido as dificuldades de habitação em Lisboa, com o aumento das rendas, do turismo e dos despejos. As autárquicas foram para os “ocupas” uma boa oportunidade para aprofundar o debate sobre as questões sociais que têm afetado a cidade: “Usar a ocupação como meio de alertar e de disputa em questões relacionadas com a habitação”, resume Maria. 


Mafalda Gomes

A assembleia não foi a primeira a chegar à casa. Um homem já lá vivia num quarto do primeiro andar, por não ter alternativa de habitação. Não tinha luz nem água e o frio que se entranha nos ossos era uma presença assídua no seu dia-a-dia. Com a ocupação, não saiu do prédio, bem pelo contrário. Tem participado na assembleia e ajudado a renovar a casa. Hoje tem luz e frigorífico, e já não vive isolado. 

Não se pense que este conjunto de ativistas são simples radicais românticos ou ingénuos que lutam por um mundo que não está ao seu alcance. A escolha da casa e o momento da ocupação foram pensados estrategicamente. “A procura foi claramente pela zona mais central de Lisboa, onde muitas pessoas moram”, diz Joana, estudante de Belas Artes de 23 anos. “A discussão toda com o Jardim do Caracol gerou uma força reivindicativa na comunidade da Penha de França”, acrescenta. Além disso, há força em ocupar-se “um prédio que é público e que está a ser destruído”, nota Maria. 

Curiosamente, a zona da Almirante Reis é conhecida por ser um “bastião da esquerda”, com várias sedes de partidos e coletivos ao longo da avenida e ruas paralelas. Esta realidade permite à assembleia mobilizar ativistas para impedirem que um eventual despejo se concretize. 

Por outro lado, o momento em que se avançou com a ocupação também não passa despercebido: foi em setembro, dias antes das autárquicas. Com o tema da habitação a assumir-se como um dos pilares do debate político camarário, dificilmente o grupo seria despejado pelo impacto que isso poderia ter nos resultados eleitorais para o candidato socialista e presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina.
O prédio de três andares, situado na Rua Marques da Silva 69, foi ocupado pela AOLX sem qualquer ligação a partidos, associações ou sindicatos. Até porque o grupo é constituído por pessoas muito diferentes entre si. “Nós somos as mais novas, a média de idades deve ser 27. Depois há pessoal que tem trabalho fixo, mas a maioria são estudantes”, diz Maria.


Mafalda Gomes

Ocupar para alertar

E porquê a ocupação? Os ativistas decidiram ocupar a casa não apenas para a “retirar das malhas da especulação”, como descrevem, mas também para “fazer dela um espaço de usufruto social”, lê-se na publicação de apresentação da ocupação na rede social Facebook. 

Com esta ocupação, a AOLX pretende também mostrar que “há alternativas às formas predefinidas de gestão de espaços e de comunicação”, diz Joana. “Em termos de questões de ocupação e resistência a problemáticas sociais, é muito fácil as pessoas sentirem-se sozinhas e não conseguirem mudar as coisas”, acrescenta.

Porém, a realidade parece estar a mudar aos poucos, com alguns exemplos de reivindicação. “Nos últimos meses temos visto que, mesmo aqui em Lisboa, como em Alfama ou na Mouraria, as pessoas, juntas, conseguem resolver os problemas”, continua. “Enquanto há espaço e vontade, as pessoas podem juntar-se para questionar e criar espaços sociais” num “sentido de comunidade”, conclui Joana.

Mal entrou no prédio, a assembleia enviou uma carta à câmara e à polícia anunciando que a “casa tinha sido ocupada por motivos de reivindicação de espaço e património públicos que estão a ser destruídos e que podem ter uso”, explica a estudante que quer vir a ser escultora.

Nos primeiros dias e noites, o receio da vinda da polícia manteve-se, obrigando a turnos para assegurar a ocupação. Mas, à medida que os dias foram dando lugar a meses, o receio foi diminuindo. Hoje, a casa é visitada por membros do coletivo todos os dias, mas já não sentem a necessidade de “guardar” a ocupação. Entre as razões encontra-se a expetativa de a câmara respeitar os trâmites legais estabelecidos para se avançar com um despejo, ao invés de enviar a polícia para os despejar sem qualquer aviso. Algo a que se junta o facto de a casa pertencer à Câmara Municipal de Lisboa: legalmente, “temos 90 dias para sair”, diz Maria. Além disso, o grupo está “sempre disposto a dialogar [com a câmara]. Somos todos pessoas e cidadãos. Não há necessidade de levarmos com 40 polícias de intervenção”, assegura.


Mafalda Gomes

Na semana em que ocuparam a casa, a polícia municipal bateu-lhes à porta e muitas das pessoas identificadas eram estrangeiras. “Temos pessoal estrangeiro. Acho que tem sempre a ver com o contexto. Havia pessoal alemão e italiano que, a nível social, são países que têm muita experiência com resistência e projetos alternativos mais fortes. Estavam numa de ajudar e de partilhar experiências.”

Quando os ativistas entraram no prédio encontraram-no num estado “lamentável”, com “janelas abertas, chão danificado e entulho”, explica Joana. “As madeiras estavam em mau estado. Havia muito lixo”, descreve Maria. Hoje, a realidade é bastante diferente. Desde setembro que, todos os sábados, cerca de 20 a 30 pessoas com “amigos que também ajudam” trabalham em conjunto para reabilitarem a casa. Querem transformá-la num espaço “virado para a comunidade e da comunidade”.

“Já gastámos três mil euros”, revela Maria. Entre materiais de construção e a contratação de um mestre de obras, a 75 euros ao dia, para dirigir os trabalhos, é sempre preciso mais dinheiro. “Devemos ter uns mil e tal euros, mas estamos sempre a fazer benefits quando ficamos apertados”, acrescenta a estudante. A palavra remete para angariações de fundos e entre as várias iniciativas que a assembleia tem dinamizado para angariar verbas encontram-se os jantares de beneficência com vários coletivos e estabelecimentos, entre os quais o DAMA, Regueirão dos Anjos, Quinta do Ferro e Estrela. Esse dinheiro será utilizado na reabilitação do rés-do- -chão e dos andares superiores, mas principalmente no telhado, que, logo nos primeiros dias da ocupação, foi arranjado com uma solução temporária. “Os andares de cima só poderão ser mexidos quando o telhado estiver arranjado”, diz Maria. 


Mafalda Gomes

Entretanto, os ativistas têm contado com a ajuda de amigos arquitetos e engenheiros para os aconselharem sobre as principais necessidades do prédio. E quando é preciso comprar materiais, “distribuímos funções. Quando precisamos de nos organizar fazemos grupos de trabalho conforme as necessidades”, explica Maria.

Os ativistas já gastaram mais de três mil euros a renovar o prédio desde que o ocuparam, em setembro de 2017

O futuro do prédio Um dos objetivos da AOLX neste prédio é lutar contra a estigmatização da ideia da ocupação. Como Maria reconhece, “há uma ideia geral do que é a ocupação e do que são os ocupas, e a nossa ideia é retirar um pouco essa ideia e esses padrões”. As ocupações, acrescenta Joana, “estão normalmente associadas a toxicodependentes ou a problemas de desavença com a vizinhança”. É por isso que, apesar de não seguir o exemplo de nenhuma ocupação em concreto, a AOLX tentou “pegar mais nos casos de ocupação que já houve em Lisboa e em Portugal” para “tentar não cometer certos erros”. Ao mesmo tempo, o grupo tem estado “a trabalhar”, “discutindo bastante” sobre essa ideia.

A presença destes ocupas não tem levantado problemas entre a vizinhança, contam. Um vez, um vizinho até lhes deixou um saco de pão à porta. Outro ofereceu-se para ajudar com as obras.

Apesar de as obras estarem longe de acabar, já pensam em possíveis destinos a dar ao prédio. Não querem que seja mais “um espaço onde se possa ir ver um concerto e beber uma cerveja”, visto que lugares desse género não faltam na capital. “Queremos que seja para o comum e que seja mais focado em questões de habitação, mas sem pôr em causa outros projetos alternativos que possam surgir”, diz Maria. 

O prédio poderá vir a ser utilizado para “habitação urgente” de pessoas em vias de serem despejadas

Entretanto, já várias pessoas contactaram a AOLX para eventualmente usarem o espaço para aulas de música e até explicações. Contudo, um projeto que tem vindo a ser discutido de forma mais consistente relaciona-se com a utilização do prédio para “habitação de urgência”. A ideia, explica Joana, é fazer da morada “habitação social para pessoas que estejam em situação de despejo iminente e precisem de alojamento temporário”. 


Mafalda Gomes

Para isso, o grupo quer “ter contacto com outras redes de solidariedade” para que possa “ajudar melhor”. O rés-do-chão seria um espaço “mais comum e comunitário”, para receber as pessoas. O plano é ter “um infopoint, sala de reuniões e cozinha comum”. A habitação seria nos andares superiores, numa casa nova de todos.