Em 1964, eu era uma menina sentada no chão de linóleo da casa da minha mãe em Milwaukee, quando vi Anne Bancroft apresentar o Óscar de melhor ator, na 36.ª edição do prémio. Ela abriu o envelope e disse cinco palavras que, literalmente, fizeram história: ‘O vencedor é Sidney Poitier’». Foi esta a memória escolhida por Oprah Winfrey para iniciar o discurso de aceitação do prémio de carreira Cecil B. DeMille que lhe foi atribuído pela Associação de Correspondentes Estrangeiros de Hollywood nos últimos Globos de Ouro, no domingo. E foi pela barreira da cor, antes de qualquer outra, que Oprah quis começar. Afinal, mas longe de ser o único, foi o primeiro entrave que conheceu na sua carreira inacreditável.
Nessa já longínqua edição dos Óscares, Sidney Poitier foi o primeiro homem negro a conquistar o prémio. O momento teve tanto impacto para uma Oprah de dez anos que ainda hoje, aos 63, não consegue pôr em palavras a imensidão e o simbolismo daquela vitória. «Tentei muitas, muitas vezes explicar o que aquele momento significou para uma menina, para uma criança que estava a ver a cerimónia enquanto a mãe chegava a casa, cansada até aos ossos de limpar a casa de outras pessoas. Mas o melhor que posso fazer é citar aquela música que Sidney cantou em Os Lírios do Campo: ‘Amém, amém, amém, amém’».
Anos mais tarde, Sidney Poitier seria, por mais do que uma vez, convidado para se sentar não no chão de linóleo, mas no sofá do programa mais bem-sucedido de sempre da poderosíssima indústria televisiva norte-americana, dirigido por aquela menina que, um dia, ficara sem ar ao vê-lo receber um Óscar. E que, já mulher, a caminho de uma carreira fulgurante, rebentou novamente de orgulho quando viu o mesmo Sidney Poitier a receber o prémio de carreira dos Globos de Ouro.
No passado domingo, chegou a vez dela. Delas. Oprah foi a primeira mulher negra a receber a distinção e dirigiu-se a todas as crianças que, como um dia lhe acontecera, poderiam estar a vê-la. «Sei que neste momento há algumas crianças que me estão a ver a tornar-me na primeira mulher negra a receber esse mesmo prémio. É uma honra e um privilégio partilhar a noite com todas elas».
Mas se o prémio – principalmente pelo seu simbolismo – é mais um marco na carreira híbrida de Oprah, para trás ficaram décadas de trabalho intenso. E, antes disso, uma infância e adolescência em que passou, literalmente, pelas piores coisas que podem acontecer a uma criança.
Missouri, Tennessee, CHICAGO
«All my life I had to fight. But I never tought I had to fight in my own house!» (Toda a minha vida tive de lutar. Tive de lutar contra o meu papá, tive de lutar contra os meus tios. Mas nunca pensei que tivesse de lutar dentro da minha própria casa!), diz Sofia em A Cor Púrpura. O papel, interpretado por Oprah Winfrey, a convite de Steven Spierlberg, em 1985, valeu-lhe a nomeação para um Óscar. E, embora o filme tenha sabido a pouco comparado com o livro homónimo de Alice Walker (vencedor de um Pulitzer) em que se baseava, marcou um momento importante da história do cinema.
Mas as palavras de Sofia podiam bem ter saído do guião da vida de Oprah.
Nascida a 29 de janeiro de 1954 em Kosciusko, Mississippi. Foi registada com o nome de Orpah – em homenagem a Orfa, uma das personagens do Antigo Testamento – Gail Winfrey, no seio de uma família batista. No entanto, rapidamente lhe passaram a chamar Oprah, por ser mais fácil pronunciar. Filha de pais muito jovens, nasceu já com os progenitores separados – o próprio namoro tinha sido intermitente – e era bebé de meses quando a mãe a deixou com a avó materna, Hattie Gail Mae, que lhe deu uma educação rigorosa e a criou até aos seis anos.
Hattie ensinou Oprah a ler antes de ter três anos – mas batia-lhe quando a menina se enganava a ler um excerto da bíblia. Levava a neta sempre consigo à igreja onde o dom para a comunicação da pequena Oprah começou a despontar. Com três anos já fazia discursos na Páscoa e no Natal, o que lhe valeu a alcunha de ‘The preacher’ (A pregadora).
Aos seis anos, a mãe Vernita Gail Lee, que trabalhava como empregada doméstica em mais do que um local, volta para levar Oprah consigo e mudam-se para a cidade de Milwaukee, no Wisconsin, onde passa a morar, num bairro extremamente pobre, também com dois meios irmãos. Com a mãe sempre a trabalhar para sustentar os filhos, Oprah cresce sozinha e, a partir dos nove anos, torna-se vítima de abuso sexual por parte dos tios e dos primos adolescentes. Batem-lhe e coagem-na a não contar nada.
Torna-se numa jovem problemática tanto que, com 13 anos, a mãe ameaçou-a com um centro de detenção. Aos 14, engravida e o bebé morre duas semanas após o parto – decide, nessa altura, que nunca mais quer ter filhos. «Não ter a atenção da minha mãe fez-me procurar refúgio noutros lugares, em lugares errados», contou em 1986 numa entrevista ao The New York Times. «Tudo mudou quando o meu pai me foi buscar a Milwaukee e levou-me para Nashville, onde vivia. A sua disciplina canalizou a minha necessidade de amor e atenção para uma nova direção».
Os frutos da nova direção chegaram rápido: aos 16 anos, ganhou um concurso de oratória que lhe valeu uma bolsa de estudos completa na Universidade do Tennessee. Aos 17 venceu um concurso de beleza. E aos 19, na faculdade, torna-se pivot da WTVF-TV – e, ainda assim, o pai exigia-lhe que estivesse em casa até à meia noite. Rapidamente recebe outro convite, para a WJZ-TV, em Baltimore, em 1976 onde, depois de trabalhar uns tempos como repórter, passa a co-apresentar o programa People Are Talking. Daí segue para Chicago onde, em janeiro de 1984, se torna a cara do AM Chicago. As audiências do programa dispararam – tanto que o programa foi rebatizado de Oprah Winfrey Show. Em setembro de 1986, passa a ser emitido em todo o país.
O resto é mais conhecido – o programa torna-se um fenómeno de audiências que se mantém no ar até 2011 e Oprah recebe o cognome de ‘A Rainha’. Foram 25 anos em que mudou a televisão nos EUA e no mundo. Foram 25 anos a tornar desconhecidos em celebridades com os seus próprios programas – como Dr. Phill ou Dr. Oz. Ganhou dezenas de Emmy’s, conseguiu entrevistas exclusivas, bateu recordes atrás de recordes e financiou musicais da Broadway.
E a última emissão não significou, de forma nenhuma, a reforma no mundo do entretenimento, até porque Oprah construiu um império difícil de bater: é dona de duas revistas – O, The Oprah Magazine e O at Home -, tem um canal televisivo, o Oprah Winfrey Network (OWN), editou vários livros e chegou a ter a sua própria produtora, Harpo, Inc., que vendeu quase na totalidade recentemente. E, na África do Sul, fundou uma escola para raparigas, inaugurada em 2007, que lhe custou 40 milhões de euros.
Oprah quebrou, com o seu sucesso, a barreira do dinheiro: foi a primeira mulher negra a ser incluída na lista dos mais ricos da Forbes, em 2003. Uma verdadeira rainha do entretenimento, a sua fortuna é atual está avaliada, segundo a revista, em cerca de 2.4 mil milhões de euros.
Qual é a sua chave? «O segredo para eu ter tido tanto sucesso financeiro é que nunca na minha vida estive concentrada em ganhar dinheiro», disse ao Business Insider.
Isso e dizer a verdade. «Dizer a verdade é a ferramenta mais poderosa que todos temos», afirmou no passado domingo, arrancando uma ovação à plateia de luxo que a ouvia no Beverly Hilton Hotel, em Los Angeles.
Oprah na Sala Oval?
Mas será que a sua possível candidatura à Casa Branca é verdade? Não é a primeira vez que surge o boato de que Winfrey poderia candidatar-se à presidência já em 2020. Mas a ideia que ganhou mais força depois do seu discurso memorável de domingo e após a CNN ter avançado que, segundo amigos mais próximos da apresentadora, a hipótese não é carta fora do baralho e que Oprah está a pensar «ativamente» nessa questão.
Amiga íntima de Barack e Michelle Obama, Oprah foi uma das caras das campanhas de 2008 e 2012. Barack não se pronunciou sobre a hipótese, mas Donald Trump não deixou passar a oportunidade em branco: «Vencerei Oprah!», comentou o Presidente dos EUA. «Eu gosto da Oprah, mas não creio que ela concorra.», afirmou Trump, lembrando participou num dos últimos episódios do Oprah Winfrey Show.
No seu discurso de agradecimento nos Globos de Ouros, Winfrey referiu que o tempo dos «homens brutalmente poderosos» tinha acabado. Uma mensagem para a Sala Oval? J