Manuel José Lopes de Carvalho não viu Madalena ganhar a terceira edição do Festival da Canção. Vejam bem o azar do marítimo que se dirigia a casa, em Cacilhas, na outra margem, como gostam de dizer os lisboetas.
Tinha 71 anos. Uma vida tranquila, sem aborrecimentos de maior, espondilose aqui e ali, reumático, ligeiríssima dilatação da aorta perfeitamente compreensível em quem já tinha ocupado lugares de responsabilidade nas não grandemente funcionais repartições da época.
Ia pensativo, pela Rua da Graça, dependurado da boleia do elétrico para poupar uns tostões.
Depois, um solavanco.
Manuel cai no empedrado, atrapalhando o tráfego.
Sangue escorrendo numa filazinha estreita, em direção ao passeio, fugindo para a sarjeta entupida de folhas amareladas de árvores carecas.
No Hospital de São José confirmaram o óbito. A assinatura do médico legista era ilegível. O português tem destas ironias negras até na negra hora da morte: legista não legível.
Manuel José Lopes de Carvalho não era gente importante, cavalheiro aburguesado de família aforrada. Não mereceu mais do que um nota de rodapé.
Já Armando Rodrigues da Silva, esse sim, tinha o seu belo pé-de-meia.
Riquíssimo pé-de-meia, convenhamos.
Jovem apessoado, proprietário de terras. Os vizinhos chamavam-lhe unhas--de-fome.
Os vizinhos tinham razão. Tinham toda a razão.
No dia 15 de janeiro de 1966, também não viu o Festival da Canção, ele que até era dado à coqueterie e não perdera, certa vez, a oportunidade de mergulhar nos bastidores do Teatro Villaret para oferecer um ramo de madressilvas à jovem Eunice Muñoz, e vestia elegantemente na Cápida, a Casa Pires Nunes de Almeida, à Rua Augusta.
Nessa tarde foi encontrado em casa pela mãe, Dona Delfina Martins, morto de frio e de fome e com a cara já meio roída pelos ratos.
Ah! Tão jovem. Que jovem era.
Provavelmente não tão menino de sua mãe quanto isso, Dona Delfina que o diga.
Maledicência Houve, mais tarde, quem dissesse e escrevesse, com um toque de requintada ironia, que, tirando a vida, Manuel e Armando não perderam grande coisa.
“Sei quem ele é/ Ele é bom rapaz/ Um pouco tímido até…”
Houve quem publicasse na tinta indelével de um jornal um testemunho destruidor: “É isto, isto que acabaram de ler, esta gaguez informe e retardada, que vamos enviar a uma competição onde se encontra o nome de Portugal? Será possível vermos isto traduzido em línguas onde são os poetas quem trata do negócio? Será assim possível eliminar de um só golpe tudo o que o Benfica tem conseguido há meia dúzia de anos?”
Até a bola vinha ao barulho, de escantilhão pelas escadas da crítica.
Madalena Iglésias estava-se nas tintas.
E cantava: “Ele pensa nela/ a toda a hora/ sonha com ela/ p’la noite fora…”
Gaguez? Mas há alguém que gagueje apóstrofes?
O Benfica não voltaria a ganhar a Taça dos Campeões Europeus, que sempre era um bocadinho mais entusiasmante do que o Eurofestival, mas enfim, não se pode querer tudo, como concluiria o Mário Henrique Leiria, poeta das nêsperas.
“Entre o riso e o choro, pergunto por perguntar. Por vício. Por doer muito. Doer de mais. Ficou-me este vício maluquinho, esta mania mansa de dedilhar, febril, uma corda partida da guitarra…”
Manuel e Armando não estavam lá, nos estúdios da Tobis, em Lisboa, nem sequer em casa, embasbacando-se com o brilho ainda meio baço da pantalha nesse ano de 1966 acabado de começar.
Pois não. Estavam mortos.
Madalena Iglésias regressou ao palco já vencedora.
Toda a gente sabia quem ela era.
“Ele sem ela/ não é ninguém/ ele sem ela/ não é ninguém/ ele sem ela não é ninguém…”
Uma certa gaguez.
Talvez tivesse razão o lamentoso crítico.
O desgraçado crítico, melhor dizendo.
“Sinto a desgraça de estar preso ao banco desta galé. De não poder respirar, fundo, o ar que vem do Tejo – e em vez disso ficar a lembrar o que gostaria de esquecer… Meus amigos: este Festival da Canção Portuguesa foi inventado, certamente, por um espírito maligno, desejoso de nos fazer correr a todos – a todos porque, afinal, ninguém pode alijar-se de responsabilidades – uma escala de sentimentos na qual se vai do riso à pena, à lágrima da troça.”
Troça, Mário, troça…
Castrim, claro!
De pouco lhe serve a troça.
Altaneira, Madalena, a Madalena/maligna, a Malignalena, abre os olhos para as câmaras: “E a beleza dela logo o prendeu/ gostam um do outro/ e agora ele diz/ que alcançou na vida o maior bem/ e é feliz.”
Feliz não é, obviamente, a métrica.
Madalena, a Iglésias, está-se nas tintas para a métrica.
Está-se nas tintas para o homem que caiu do elétrico na Rua da Graça.
Não imagina sequer que os ratos roeram a cara de Armando.