A comissão de trabalhadores (CT) da RTP emitiu um comunicado onde denuncia três situações de conflito de interesses existentes na administração da televisão pública. Em causa estão o diretor de programação, Daniel Deusdado, o administrador Nuno Artur Silva e, apesar de não fazer parte dos altos cargos da RTP, o ator Virgílio Castelo, consultor para a ficção.
“A atual RTP tem um diretor de programas que passou a sua produtora de vídeo para a posse da esposa, um administrador para a área dos conteúdos que tem um canal de televisão em concorrência direta com a própria empresa e um colaborador que emite pareceres sobre a aquisição de projetos de ficção onde participa como ator”, pode ler-se no comunicado.
Sobre Nuno Artur Silva, dono da produtora Produções Fictícias (PF) e do Canal Q, a CT afirma que o administrador “tem alegado que a lei não o ‘obriga’ a vender as PF desde que a RTP não mantenha com esta produtora quaisquer negócios”.
Paulo Mendes, porta-voz da CT, disse ao i que se trata de factos e não de acusações. “As barreiras entre os interesses comerciais à volta da RTP e a RTP estão completamente difusas”, afirma o porta-voz.
Apesar de o comunicado ter sido emitido na semana passada, a situação não é nova. Aquando da tomada de posse da administração, em 2015, a Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CReSAP) tinha atribuído um parecer “adequado com limitações” sobre Nuno Artur Silva, que “foi fundador e tem exercido o cargo de presidente do conselho de administração de uma empresa que detém um canal de televisão, o que por si só coloca problemas de natureza concorrencial que não foram clarificados”, pode ler-se no parecer.
Luís Marinho, ex-administrador da RTP, relembra que os pareceres da CReSAP não são vinculativos. “A CReSAP pode achar o que entender; se o atual Conselho Geral Independente quiser nomear esta administração ou estas pessoas, nomeia. Nada o impede.”
“Três anos depois, o problema mantém-se”, afirma Paulo Mendes. “Ainda por cima preparam–se para renovar o mandato, mantendo-se o problema.” “Estamos a apontar um facto que em qualquer parte do mundo é um conflito de interesses”, acrescenta o porta-voz da CT, que considera esta questão como uma “sombra [que] continua a pairar na RTP.”
Para o ex-administrador, Nuno Artur Silva “agora pode vender, pode revender, pode passar para a mulher – como fez o atual diretor de programas -, podem fazer o que quiserem. Eu acho que, do ponto de vista ético, está completamente inquinado”.
Mais que legalidade, ética “As pessoas não podem olhar para uma empresa pública e ter dúvidas de quem a gere”, acrescenta Paulo Mendes.
Para Luís Marinho, a questão vai além da legalidade, “é um problema ético”. “É uma questão que me espanta, sempre me espantou que isso fosse possível”, afirma o ex-administrador, que não entende como foi aberto o precedente.
O i tentou entrar em contacto com Nuno Artur Silva, mas sem sucesso. No entanto, numa entrevista dada ao i a 3 de outubro de 2015, o administrador não via como obrigatória a venda da produtora. “A única coisa que tive de fazer para vir para a RTP foi deixar todos os cargos da administração, mas podia manter as sociedades. Continuo a ser o único sócio das PF. Não tenho nenhuma incompatibilidade”, afirmava então.
Para António Luís Marinho, a justificação dada por Nuno Artur Silva “não faz sentido nenhum”. “Ele continua a ser o único proprietário da empresa. Ninguém pensa que uma pessoa, sendo proprietário de uma empresa, não se interessa por ela.”
O ex-administrador relembra ainda uma altura em que, depois de a administração de Nuno Artur Silva ter tomado posse, os colaboradores do Canal Q começaram a trabalhar com a RTP. “Tudo isto levanta questões que são difíceis de entender numa empresa pública que se quer o mais transparente possível”, acrescenta.
Ao i, Virgílio Castelo afirmou que o comunicado “é uma tomada de posição deontologicamente inaceitável e, do ponto de vista moral, abjeta”, uma vez que não lhe foi dada hipótese de se explicar.
“O que eu gostava de dizer é que os senhores membros da CT podem consultar toda a tramitação que foi feita de todos os processos de aprovação de séries nos quais eu intervenho, podem consultar os trabalhadores que trabalham no departamento de conteúdos comigo e, depois de terem acesso a toda a comunicação, poderão formular uma opinião sustentada”, afirmou Virgílio Castelo. “Nessa altura, poderão pedir-me desculpas que eu aceito as desculpas”, acrescentou.
Sobre a série “País Irmão”, produção onde interpreta a personagem de Tony Santa Clara, Virgílio Castelo explica que não fazia parte do elenco inicial. “Depois de a série [ter sido] aprovada, o ator que estava previsto para o papel – o Joaquim de Almeida – não pôde fazer e a produtora convidou-me a mim. Pareceu-me que não havia problema nenhum em aceitar”, disse.
Direção da RTP responde Daniel Deusdado enviou um comunicado aos trabalhadores da televisão pública onde identifica um “erro essencial” na posição da CT: “As decisões de que é acusado o administrador Nuno Artur Silva, em rigor, são da responsabilidade legítima e última da direção de programas da RTP1.”
“É absolutamente claro e verificável que a RTP1 não contratou nenhum conteúdo à empresa PF desde 2015, altura em que assumi funções de diretor”, afirma Deusdado
Sobre o facto de ser a mulher quem está à frente da produtora Farol de Ideias/Biocastelo, responsável pelo programa “Biosfera”, em antena na RTP2 desde 2005, o diretor recorda que Arminda Deusdado “já detinha 50% da empresa desde a sua fundação, passou a deter a totalidade da mesma”. “Vivemos, felizmente, num tempo em que as mulheres são autónomas e podem liderar empresas por competência e mérito – e não por serem ‘esposas’ de alguém nem dependerem do ‘marido’”, acrescenta.
Sobre a série “País Irmão”, o diretor de programação questiona a CT se deviam ser vetados os “bons projetos” simplesmente por terem sido apresentados à PF anteriormente.
Deusdado acusa ainda a CT de pretender “instalar um clima de suspeição sobre supostos conflitos de interesses onde não há nem conflitos nem interesses”.