Segundo o Ministério Público
O Ministério Público considera que Manuel Vicente, ex-vice-Presidente de Angola, pagou 760 mil euros ao antigo procurador português Orlando Figueira para que este arquivasse o inquérito conhecido como Portmill, que visava aquele ex-governante. A investigação concluiu que os crimes terão sido praticados com o auxílio de Armindo Pires, homem de confiança de Vicente, e de Paulo Amaral Blanco, advogado do Estado Angolano em vários processos.
Na chamada Operação Fizz estão em causa crimes de corrupção, branqueamento de capitais e falsificação de documento.
O início do esquema
Estamos em 2011 e o procurador do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, que investiga a criminalidade económico-financeira mais complexa, tinha em mãos vários inquéritos que visavam a elite angolana.
Na sua vida pessoal, as coisas não corriam de feição – enfrentava o divórcio – e andava descontente com a remuneração que tinha como magistrado. Orlando Figueira foi procurador entre setembro de 1990 e setembro de 2012, tendo liderado investigações como o Caso Banif e o BES Angola.
A viagem a Angola
O departamento a que pretencia Orlando Figueira e que agora o investigou concluiu que o alegado esquema de corrupção começou a desenhar-se na capital angolana. Isto porque, segundo a acusação, a determinado momento o advogado Paulo Blanco aproximou-se de Figueira e nessa sequência acabou por lhe entregar um convite para participar na semana da legalidade, evento que teve lugar em Luanda no mês de abril e que tinha o objetivo de celebrar o 32.º aniversário da Procuradoria-Geral da República de Angola. Orlando Figueira aceitou o convite e com ele foi também o procurador Vítor Magalhães.
A viagem acabou por se transformar, porém, numa jornada que extravasou largamente o evento, tendo existido diversos encontros entre Orlando Figueira e políticos importantes daquele país – nas conversas, diz a acusação, o antigo procurador português não terá escondido a sua insatisfação com a vida em Lisboa e com as fragilidades económicas que atravessava.
O regresso a Portugal
A 2 de maio Figueira regressou a Portugal. Logo de seguida terá interrogado o banqueiro angolano Carlos Silva, presidente do Conselho de Administração do Banco Privado Atlântico, numa diligência que terá sido presenciada por Paulo Blanco. Após isso, os três foram ao Hotel Ritz almoçar, tendo Figueira insistido no seu interesse em sair da magistratura e alimentado a ideia de viver em Angola.
A conversa, considera o DCIAP, rapidamente chegou aos ouvidos de Manuel Vicente, representado por Paulo Blanco, até pela amizade que o ex-governante mantinha com Carlos Silva. À data dos factos, Manuel Vicente ainda não tinha chegado ao Governo, sendo presidente da Sonangol (além de estar no Conselho Geral de Supervisão do Millenium BCP).
As procuradoras Patrícia Barão e Inês Bonina concluiram que nessa data corria já no DCIAP um inquérito em que se investigava Manuel Vicente e outros dirigentes angolanos por corrupção e branqueamento. Em setembro viria a ser aberto um outro inquérito a visar Manuel Vicente – e este, diz a investigação, teria receio do peso que tais inquéritos poderiam ter na sua imagem, até porque estava prestes a entrar para o Governo.
O acordo da corrupção
A acusação considera que, agindo sempre na sombra mas sempre a par de tudo o que se estava a passar, Manuel Vicente terá decidido fazer uma proposta a Orlando Figueira – se o magistrado conseguisse o arquivamento, teria um emprego no privado com uma remuneração muito acima do seu vencimento enquanto procurador (sobretudo depois dos cortes salariais).
A investigação do DCIAP concluiu que Orlando Figueira não resistiu à investida do governante angolano e aceitou a proposta a 4 de outubro de 2011, tendo não só procedido ao arquivamento da investigação como ainda feito desaparecer todas as referências a Manuel Vicente no inquérito. «A investigação dos presentes autos já não abrangerá aquele suspeito Manuel Domingos Vicente», escreveu Orlando Figueira num dos despachos relativos ao inquérito que incomodaria o ex-governante angolano.
Saída do DCIAP para o privado
Já com tudo planeado, diz o MP, Orlando abandona no início de setembro o Departamento Central de Investigação e Ação Penal com uma licença sem vencimento e a promessa de que não iria trabalhar para angolanos. É que na altura as suspeitas ainda se levantaram, mas Orlando Figueira apressou-se a desmenti-las a Candida Almeida, então diretora daquele departamento.
Desmentiu as notícias, mas a verdade é que estava cada vez mais envolvido com a elite angolana, defende a acusação. E apesar de ter assinado um contrato como diretor jurídico para desempenhar funções em Angola, a verdade é que nunca abandonara Portugal, onde foi Compliance Advisor no Millenium BCP. Depois dessa experiência, foi transferido para o Ativo Bank por haver suspeitas de fugas de informação.
O MP vai ao ponto de dizer que dada a gravidade das suspeitas que havia sobre Figueira no Millenium BCP, só o acordo estabelecido com Manuel Vicente pode justificar que o antigo magistrado não fosse corrido do grupo – o Activo Bank é detido pelo Millenium BCP.
Para o MP, a Primagest, com que Orlando chegou a ter um contrato, estava ligada à Sonangol.
Figueira sabe da investigação
De acordo com a acusação, Orlando Figueira soube que estava a ser investigado em 2015 e foi de imediato declarar os rendimentos que até aí não tinha declarado e que para a investigação não passam de valores pagos em contrapartida pelo arquivamento.
A versão de Paulo Blanco
A viagem a Angola
Na sua contestação, Blanco assegura que não foi ele a fazer o convite aos magistrados portugueses, mas sim o procurador-geral da República de Angola, João Maria de Sousa, via procurador-geral da República de Portugal, Pinto Monteiro. Ainda assim, o advogado admite ter acompanhado sempre os procuradores nas deslocações na capital angolana, dado que fora também convidado.
E é nesta visita que, segundo Paulo Blanco, a saída de Orlando Figueira do DCIAP se começa a desenhar. «O Dr. Orlando Figueira distribuía cartões de visita a toda a gente que se encontrava em tais eventos, como se fosse um profissional liberal por conta própria». Nesses encontros esteve também Carlos Silva, que Figueira sabia ter muita influência e poder na banca.
O regresso a Portugal
A viagem a Angola terminou a 2 de maio de 2011 e, segundo a versão do advogado, poucos dias depois Figueira terá entrado em contacto consigo para o informar que o procurador Rosário Teixeira estava com um inquérito no âmbito do qual pretendia chamar Carlos Silva, mas sem que este fosse notificado. Blanco conta que, antes de fazer a ‘ponte’, exigiu ser recebido por Rosário Teixeira, o que acabou por acontecer. Quando chegou o dia da deslocação de Carlos Silva ao MP, acompanhou-o não como advogado, até porque o advogado do angolano era Daniel Proença de Carvalho, mas porque Carlos Silva se sentia mais a vontade dada a relação que Blanco tinha com o procurador.
«Quer o Dr. Carlos Silva, quer o Dr. Daniel Proença de Carvalho, perceberam assim o nível de confiança de que o arguido gozava junto dos referidos Procuradores da República ao ponto de a ele recorrerem para o agendamento de uma inquirição no DCIAP nas circunstâncias descritas», refere.
Após essa sessão, o inquirido, o advogado e o procurador Orlando Figueira almoçaram no Ritz, em Lisboa, como refere a acusação. Porém, Blanco diz que tudo aconteceu a convite de Carlos Silva e que Rosário Teixeira até esteve tentado a ir.
O acordo da corrupção
Nesse almoço muita coisa aconteceu, nomeadamente o agradecimento de Carlos Silva por o DCIAP ter evitado notificá-lo formalmente e as manifestações de agrado do procurador com o que tinha visto em Angola. O procurador terá de forma explícita manifestado vontade de ir para Angola trabalhar, apesar de ter problemas pessoais que precisava resolver antes.
O presidente do BPA correspondeu e disse que tinha um lugar para Orlando Figueira, referindo até que Paulo Marques, advogado e membro dos órgãos sociais daquele banco que trabalhava em Luanda, tinha interesse em regressar a Lisboa, devido a problemas que estava a atravessar com um familiar próximo.
A partir desse momento, os contactos entre ambos deixaram de precisar de intermediação, conta Paulo Blanco. Nessa altura, maio de 2011, o advogado conta que a sua sociedade só tinha trabalhava um inquérito do DCIAP em que era assistente o Estado angolano e que as suas deslocações ao edifício eram sempre profissionais.
Blanco diz que o acordo é fechado num segundo almoço, em dezembro – altura em que chegou a rever uma minuta de trabalho, sendo que Carlos Silva ainda não tinha decidido se seria para o BPA Europa ou para o angolano, sendo que mais tarde referiu ter entregue a minuta do contrato no BPA Europa.
Mas, no mês seguinte, declarações do ativista angolano Rafael Marques num inquérito em curso implicaram não só a entidade bancária como Carlos Silva, o que levou este último a decidir que a entidade patronal de Orlando Figueira tinha de ser a Primagest, «que é como é bom de ver um mero veículo do Banco Privado Atlântico, SA, de direito angolano». Reforçando a centralidade de Proença de Carvalho em todo este caso, Blanco diz que por vários motivos cortou nessa altura relações com Orlando Figueira e com Carlos Silva.
O que alega orlando Figueira
Ponto prévio
Tal como Paulo Blanco, foi já depois de saber que ia a julgamento que Orlando Figueira decidiu abrir a boca e contar tudo, No seu caso, disse não o ter feito antes porque estava a viver na dependência dos responsáveis pelo esquema, era Daniel Proença de Carvalho que lhe pagava o advogado, contou. O procurador não nega ter cometido crimes de fraude fiscal e branqueamento.
Figueira, que chegou a estar preso na cadeia de Évora, diz no entanto que mesmo mesmo antes desta denúncia a acusação tinha tudo para chegar aos verdadeiros responsáveis, em vez de construir «uma estória romanceada, totalmente falsa»: «[O MP] começou a investigação do fim para o princípio; Bem sabendo que tinham um inocente preso; que estavam a enlamear a figura de um Chefe de Estado também ele inocente, prejudicando de uma forma totalmente irresponsável as relações diplomáticas entre dois Estados Soberanos, Portugal e Angola».
A viagem a Angola
Após descrever como conheceu Carlos Silva (em outubro de 2009) e o advogado do Estado angolano (também arguido no caso Fizz), Paulo Blanco, Figueira conta como estreitou relações entre as PGR de Portugal e de Angola e fala dos encontros que o homem que lidera o MP angolano teve em Portugal com a estrutura do MP português. Além disso relata viagens a Angola, feitas a convite das autoridades daquele país.
É durante uma visita que fez com o procurador Vítor Magalhães durante a semana da Legalidade, em 2011, que Orlando Figueira se depara com o primeiro convite de Carlos Silva: «O Orlando era uma pessoa que eu gostaria que viesse trabalhar connosco». Ao que o então magistrado respondera: «Nunca se sabe, talvez quando me reformar».
Figueira diz que nada nessa visita foi anormal e adianta mesmo que esteve sempre em contacto com Cândida Almeida, à data diretora do DCIAP, que atéconcordou com a ideia que circulava em Angola de abrir uma formação em Portugal para magistrados angolanos.
O regresso a Portugal
A ideia de vir a trabalhar com Carlos Silva ficou sempre na cabeça de Orlando Figueira, que, admite, em 2011 passava por uma separação e dificuldades financeiras. Tudo isto levou a que um dia abordasse Paulo Blanco sobre a possibilidade de vir a trabalhar para Carlos Silva, tendo recebido uma resposta positiva.
O acordo da corrupção
O que acabou por acordar com Carlos Silva foi o recebimento de 15 mil dólares para ser diretor jurídico do grupo Banco Privado do Atlântico. Nesta altura, defende o ex-magistrado na exposição entregue em dezembro, nem sequer fazia ideia de que iria ser titular de um caso a envolver Manuel Vicente.
Mesmo tendo acabado por não trabalhar com Carlos Silva, nem ido para Luanda, a verdade é que logo em janeiro de 2012, quando ainda estava no DCIAP, recebeu 210 mil dólares (um ano de salários adiantados) a título de garantia, conforme tinham acordado com o banqueiro. Salienta que no banco entregou até o seu contrato com a Primagest – que diz ser testa de ferro de Carlos Silva – para justificar a receção daquele montante.
A partir daí, conta o ex-magistrado tudo começou a correr mal, tendo Paulo Blanco e Carlos Silva adotado uma postura esguia, que o deixou preocupado. Sobretudo com o aproximar da data de início da licença sem vencimento – ninguém falava consigo para «execução do contrato prometido».
Figueira conta como foi aconselhado a abrir uma conta num paraíso fiscal, o que fez, e todas as promessas que lhe foram feitas e nunca cumpridas. Diz que nunca arquivou nenhum caso por dinheiro e assegura não ter falado a verdade antes devido a um «acordo de cavalheiros» feito com Proença de Carvalho, que emtroca lhe pagaria a defesa na Operação Fizz e arranjaria um trabalho no futuro. Admite ter sabido da investigação em 2015, o que o levou a liquidar impostos, com dinheiro de Carlos Silva, para pedir a suspensão provisória do processo.