Críticas à investigação, acusações ao banqueiro Carlos Silva e ao advogado Daniel Proença de Carvalho, alguma ironia e muita imodéstia. Ontem, o antigo procurador acusado de receber subornos de Manuel Vicente repetiu quase tudo o que tinha dito no primeiro dia de julgamento do caso Fizz, mas deixou uma garantia: não se importa que seja quebrado o seu sigilo telefónico para que o tribunal possa confirmar as ligações de Proença de Carvalho a todo este caso.
Desde a primeira sessão que Orlando Figueira quebra o protocolo e entra e sai quando quer da caixa destinada aos arguidos para se aproximar da parede onde partes do processo são projetadas a seu pedido. Ontem voltou a fazê-lo, chegando em determinado momento a responder às perguntas do coletivo de juízes a poucos palmos de distância.
O antigo procurador tem garantido que Manuel Vicente foi apanhado no meio de todo este furacão sem ter qualquer intervenção, referindo que tudo o que acordou foi com o presidente do Banco Privado Atlântico e vice–presidente do Millennium BCP, Carlos Silva. Alguém, disse ontem, que “se fosse homem” já tinha vindo contar o que realmente se passou.
Conta que Daniel Proença de Carvalho surge nesta teia por ser advogado de Carlos Silva e seu intermediário e, além disso, por lhe ter oferecido contrapartidas para que não contasse a verdade no primeiro interrogatório da Operação Fizz. E Figueira assegurou aos juízes estar disponível para que o tribunal tenha acesso à sua faturação telefónica e confirme que o que está a dizer é verdade: “Autorizo a quebra do sigilo do meu telemóvel.”
“Fiz um acordo de cavalheiros com Daniel Proença de Carvalho em abril, maio de 2015 para fechar a rescisão amigável com a Primagest”, disse Figueira, refutando a tese do Ministério Público de que a Primagest está ligada a Manuel Vicente e afirmando que é uma sociedade-veículo de Carlos Silva.
Segundo o antigo procurador, Proença de Carvalho terá garantido que em troca lhe seria pago tudo o que lhe era devido: “Não falei de três temas no primeiro interrogatório, não sabe como hoje me sinto livre. O dr. Daniel Proença de Carvalho exigiu que não falasse no nome dele, no do doutor Carlos Silva nem na conta que eu tinha aberto em Andorra [para receber remunerações no âmbito do contrato de trabalho que diz ter assinado com a sociedade ligada a Carlos Silva].”
Orlando Figueira confidenciou em tribunal que para cumprir o acordo no interrogatório teve de “fazer uma ginástica medonha”. Confessa ainda que nunca pensou que seria preso. Mas, depois de o ser, ainda esperou uma mudança de posição, conta, que nunca aconteceu: “Pensei que o dr. Carlos Silva viesse contar a verdade, que fosse homem.”
A ironia, a imodéstia e as críticas à investigação Logo durante a manhã de ontem, o antigo procurador do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) disse só existir uma razão para que a acusação insista no nome de Manuel Vicente em vez de colocar o de Carlos Silva: “Houve necessidade da investigação em pôr o Manuel Vicente e não o Carlos Silva, porque, se deixasse de haver Carlos Silva, deixaria de haver corrupção e crime. Por isso, com todo o respeito, se onde se lê Manuel Vicente se lesse Carlos Silva, não havia corrupção.”
Palavras que contrariam o que a procuradora de julgamento Leonor Machado disse logo na primeira sessão, ou seja, que a alegada participação de Carlos Silva neste caso, denunciada pelos arguidos, não altera o esqueleto da acusação.
“Como é que Manuel Vicente era o todo-poderoso e lá de Angola fazia plim e o dinheiro aparecia?”, questionou ao tribunal Orlando Figueira, tentando demonstrar que é preciso apurar quem foram as pessoas que, por exemplo, autorizaram o empréstimo que lhe foi concedido e o contrataram. Orlando Figueira garante: “Foi Carlos Silva.”
“Vá lá não dizerem que foi o Trump”, concluiu o antigo procurador, dizendo que quando investigava traçava toda a cadeia de responsabilidades, algo que neste caso não foi feito.
“Eu só promovi prisões preventivas que eram seguras e depois de lamber muito papel”, disse, questionando o trabalho feito pelas duas procuradoras do DCIAP que conduziram a investigação Fizz.
Aliás, quanto ao seu trabalho tanto como procurador como enquanto orador em palestras que deu, algumas em Angola, o discurso de Orlando Figueira tem sido marcado por diversos autoelogios: investigações “tecnicamente irrepreensíveis” e conferências que “foram um êxito”. Tudo isto, “modéstia à parte”.
O suspeito empréstimo de 130 mil euros Uma das questões que foram colocadas pelo juiz presidente do coletivo, Alfredo Costa, foi o porquê de Carlos Silva ter acedido a dar um empréstimo ao antigo magistrado, uma vez que, segundo a sua versão, não eram assim tão próximos, e lembrando ainda a coincidência temporal desse empréstimo com um requerimento apresentado pelo arguido Paulo Blanco, à data advogado de Manuel Vicente e do Estado angolano num inquérito que Orlando Figueira tinha em mãos (caso Portmill).
Orlando Figueira defendeu que o empréstimo foi pedido por motivos pessoais e que nada teve a ver com o requerimento: “As coisas foram despachadas com lisura e correção técnica.” Figueira respondeu ainda ao juiz dizendo que não foi uma coincidência, que “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”.
Salientou ainda que na altura em que o empréstimo foi aprovado não havia qualquer ligação do segundo caso da Portmill a Manuel Vicente: “Não sabia se isto estava ligado a Manuel Vicente ou ao Manuel dos Anzóis.”
Enquanto magistrado, Orlando Figueira teve dois inquéritos relacionados com a Portmill: num deles estavam em causa umas offshores que compraram casas no condomínio Estoril-Sol, noutro uma sociedade, também de nome Portmill, que comprou 24% das ações do BES Angola ao BES. No primeiro, o procurador extraiu certidão para investigar o caso de Manuel Vicente à parte, tendo arquivado o inquérito e devolvido toda a documentação que a defesa forneceu (ver texto pág. 8). No segundo caso diz que não estava a ser investigado ninguém em concreto, mas sim quem seriam em abstrato os responsáveis pela sociedade e qual a origem do dinheiro usado para a compra do BES Angola – Orlando Figueira lembrou que este processo já foi reaberto por um colega e novamente arquivado.
Quanto ao empréstimo de 130 mil euros, uma parte das contrapartidas que lhe foram dadas segundo a acusação, assegura que deu garantias e que uma delas foi o facto de em breve ir trabalhar para o grupo do banco que lhe estava a conceder o empréstimo, uma vez que já estava tudo apalavrado com Carlos Silva.
As outras garantias bancárias, refere, eram aplicações de 35 mil euros e de 12 mil euros que tinha noutros bancos, bem como a garantia de que não venderia a sua casa (que diz ter um valor comercial de 450 mil euros e tem hipotecas no valor de 280 mil).
Coletivo surpreendido com facilidades Por diversas vezes, o juiz-presidente do coletivo manifestou a sua surpresa perante as alegadas facilidades dadas pelo banco, até porque, nos primeiros quatro anos e 11 meses, Orlando Figueira só tinha de pagar juros, e só no final tinha de liquidar os 130 mil euros.
Quanto ao facto de Paulo Blanco, homem que defendeu o Estado angolano em diversos processo, o ter acompanhado ao banco quando foi pedir o empréstimo, o arguido diz que foi uma questão de deferência, até porque nessa altura “nem sabia onde era o Banco Privado Atlântico”.
Diz que não aceita juízos de valor sobre o porquê de ter pedido o empréstimo quando tinha alguns recursos próprios: “Era o que mais faltava era o MP gerir a minha vida.” Figueira salienta, porém, que à época não tinha tantos recursos como os que hoje tem e que até lhe permitiriam pagar todas as dívidas caso não estivessem bloqueados.