Foi prefeito de Porto Alegre, cidade onde Lula está a ser julgado, quando foi lançado o orçamento participativo e quando a cidade se tornou o berço do Fórum Social Mundial, que durante os primeiros anos do séc. XXI mobilizou milhões de pessoas e todo o planeta. Foi governador do Rio Grande do Sul e ministro da Educação num governo Lula. É um dos principais quadros intelectuais do PT, que procura os caminhos para relançar as políticas de esquerda. Tarso Genro veio a Lisboa para participar numa iniciativa da Fundação José Saramago e do CES.
Entrevistei-o há muitos anos no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, numa altura em que me disse que o PT não pretendia fazer uma revolução; bastava dar mais rendimento e cidadania à esmagadora maioria da população que estava excluída dos direitos sociais e da democracia para se fazer uma gigantesca transformação. O que falhou?
Os dois governos do presidente Lula tiraram da pobreza quase 40 milhões de pessoas. Isso, para um país com desigualdades sociais brutais e que tem uma elite dominante enraizada na história esclavagista do país, foi uma grande transformação democrática e social. Só que não foram mudadas estruturas reais de poder. As políticas públicas que foram desenvolvidas não criaram mecanismos democráticos para a participação direta dos mais excluídos e das classes trabalhadoras que permitissem que esse modelo se estabilizasse.
Na altura defendeu que não era necessário mudar a estrutura da propriedade, bastava redistribuir de uma forma diferente o rendimento. O que não foi cumprido em matéria de empoderamento dos mais pobres?
Porque a partir daquele momento se aceleraram as condições financeiras para a globalização do planeta, e a globalização financeira do planeta ocupou áreas do Estado e reduziu a força normativa das constituições democráticas, o Estado ficou subsumido e integrado, de forma quase linear, nos interesses do capital financeiro, que passou a controlar a vida política do país, a intervir fortemente, através dos média, na formação da opinião pública. E conseguiu criar uma resistência e um bloqueio muito grande nas classes médias, que o PT representava. Como nós não alterámos a capacidade de participação popular nas decisões públicas, ficámos fragilizados e com muitas dificuldades para resistir à maré montante do poder fáctico da globalização, que é o capital financeiro.
É interessante que o politólogo André Singer, que participou nos primeiros governos do PT, faz uma análise que demonstra que Lula foi inicialmente eleito pelo eleitorado, e pela classe média, das grandes cidades do sul, como São Paulo e Rio de Janeiro, e depois passou a ser apoiado sobretudo pelas populações pobres do norte e nordeste.
É verdade que houve uma redução muito grande do apoio do PT nessas camadas. A razão é que a conquista de condições e poder por parte das classes sociais de baixo, num país tão desigual como o Brasil, incomoda as classes mais empoderadas, gera constrangimentos e convívios sociais a que elas não estavam acostumadas. Vou dar um exemplo concreto: o Prouni, que é um programa de bolsas de estudo para estudantes pobres, que entram na universidade aos milhares. É um programa que eu implementei como ministro da Educação, com a direção óbvia do presidente da República, e que levou mais de dois milhões de estudantes de famílias com menos de três salários mínimos a estudar nas universidades privadas mais qualificadas do país. E a política de quotas, que foi mais implementada na nossa gestão, abriu as portas das universidades públicas a muitos estudantes pobres. Isso gerou determinados conflitos, alarmes e inquietações, como se isso fosse uma coisa subversiva. Estas políticas geraram no Brasil – que tem uma classe média normalmente branca, elitista, com um pensamento autoritário e que apoiou o golpe de 1964 [golpe de Estado militar que derrubou o governo democrático e eleito do presidente João Goulart, conhecido como Jango] – uma coesão muito grande contra o PT. Também não se pode negar e descartar os erros de condução política que o PT cometeu: o excesso de confiança que teve com uma aliança com o centro “fisiológico” que é o PMDB, e erros de pessoas que cometeram uma série de ilegalidades que, aliás, não eram nenhuma novidade na história do Estado brasileiro.
Essas ilegalidades como o Mensalão, que era a compra de votos de deputados com dinheiros públicos para conseguir maiorias parlamentares, não são fundamentais para explicar a degradação da imagem do PT? Pedia-se ao Lula que mudasse a política brasileira, não que se mudasse com ela.
Não há aproximação ao Estado e à gestão pública que não gere um certo grau de deformidade. Isso ocorre em todos os partidos, esse processo de ilegalidades e de corrupção de uma parte da elite política. Sempre existiu no país. Não justifica que o PT se tenha envolvido nisso, mas não foi por isso que o PT e a Dilma foram expulsos do governo: o governo que sucedeu à Dilma, apoiado pelas elites brasileiras e os meios de comunicação, reuniu a parte mais corrupta dos políticos: somou a parte corrupta do governo Dilma com a parte corrupta dos partidos que estavam na oposição de direita.
Há um outro aspeto importante em relação à queda do PT: de um mandato para o outro, a presidente Dilma inverteu aspetos significativos da política económica, jogando nos cortes das despesas sociais e implementando uma política de austeridade que penalizava os mais pobres, cortando com uma parte significativa da sua base de apoio.
Sem a menor dúvida que isso aconteceu. O segundo governo da presidenta Dilma não conseguiu resistir à pressão [do capital financeiro] e deu início a algumas “reformas” que foram radicalizadas pelo governo Temer. Esses erros políticos ocorreram: pessoas inteiramente vinculadas à visão neoliberal e predatória do capital financeiro ocuparam cargos de destaque no governo Dilma. É bom lembrar que o atual coordenador político do presidente Temer teve uma função de alta relevância no governo Dilma. Estou a falar do deputado [Eliseu] Padilha [atual ministro-chefe da Casa Civil e ministro–chefe da Secretaria da Aviação Civil no segundo governo Dilma], do Rio Grande do Sul, que eu conheço muito bem. Quando o Padilha e o [Joaquim] Levy [ministro das Finanças no segundo governo Dilma] entraram no governo, eu comentei com amigos, “isto aí não vai dar certo”, e não deu certo.
Está-me a dizer que o PT não foi derrubado pelas más práticas políticas, algumas corruptas, que permitiu, mas pelas boas coisas que fez. Mas o poder não criou um sentimento de ascensão social em muita gente do PT e mesmo no Lula? Há um célebre documentário de João Moreira Salles, “Entreatos”, passado na campanha em que Lula ganha, em que ele começa a protestar quando dizem que ele gosta mais de terno que de fato-macaco, dizendo que nunca gostou de usar fato-macaco porque fazia calor e era mau de usar. Não há aqui um certo aburguesamento?
(Risos) Lembro-me perfeitamente de alguns desses diálogos [gravados no documentário], eu participei. Eu acho que isso existe em qualquer governo e pode ter influência no trajeto de várias pessoas. No presidente, eu acho que não porque ele sempre foi fiel a uma visão de conciliação política. O presidente Lula nunca foi revolucionário e nunca foi de esquerda no sentido estratégico. Sempre foi progressista, democrático e conciliador na sua origem sindical.
Nunca foi de esquerda?
Nesse sentido histórico em que se coloca a esquerda como uma força que quer quebrar as estruturas de poder para levar para o poder um outro grupo social, nesse sentido, ele nunca foi. É progressista e democrático. É caracteristicamente um homem de centro-esquerda.
Talvez seja por isso que ele não tenha feito o empoderamento das classes mais baixas.
Não é por isso que ele não fez. Não fez porque ele não representava isso nem a sua base social e do projeto do PT previa isso. Estava apenas nos manifestos formais, na história da formação do PT.
A promessa de uma reforma agrária era apenas formal?
A promessa da reforma agrária foi cumprida. Não houve uma alteração formal da propriedade, mas houve uma inclusão massiva de agricultores através de cooperativas, de produções familiares e de desapropriações e assentamentos. A reforma agrária, em parte, foi feita de uma forma eficaz. Tanto que a agricultura camponesa tem hoje uma base fundamental na nossa base alimentar. Quando eu digo que o presidente Lula nunca foi de esquerda em termos históricos é porque ele nunca foi alguém que defendeu a queda e rutura do poder estabelecido para instalar um outro grupo social no poder. Ele nunca defendeu isso e nós nunca nos iludimos com isso.
Como é possível que a sociedade brasileira seja tão desigual, tenha uma esmagadora maioria de pobres e que, apesar disso, a esquerda seja tão minoritária no parlamento e esteja tão dependente de um só homem?
Isso foi, para nós, a esquerda, o que o destino nos reservou: um líder político excecional que compreendeu a necessidade de criar e agregar uma ampla frente política que colocasse à mesa das negociações da democracia brasileira a classe trabalhadora. Foi isso que o Lula fez. Os pobres, excluídos e a classe trabalhadora nunca estiveram na mesa das negociações da democracia brasileira. Se você usar uma metáfora da democracia como uma mesa redonda em que todos estão sentados, mas uns estão em cadeiras tão baixas que não enxergam o que está em cima da mesa, e outros têm cadeiras tão altas que dominam toda a mesa, vai perceber que o Lula fez uma enorme transformação: fez cadeiras e bancos do mesmo tamanho para todos. E isso foi feito a partir das políticas públicas progressistas que foram executadas pelo governo Lula. Agora, o Lula nunca se propôs virar essa mesa.
Não me parece é que seja um caso isolado. Em toda a América Latina, essas ruturas progressistas fazem-se muito associadas a líderes providenciais, excecionais, populares e populistas, mas, quando eles se vão, deixam um imenso vazio e não empoderaram as populações.
Continua relativamente em baixo mas, em relação ao período anterior, houve um ascenso. E isso é inesquecível para as classes populares no Brasil. É verdade que, nos países da América Latina, os movimentos de massas e as conquistas políticas se dão através de lideranças carismáticas, que lhes dão corpo. Mas nos países desenvolvidos, as classes trabalhadoras estão de tal forma integradas, em virtude da social-democracia, que elas não têm o menor interesse em fazer a revolução – como nós vimos no período histórico dos últimos 50 anos. Mas esse é um dilema que não é só do Brasil, mas de toda a esquerda mundial.
Há um outro aspeto interessante : enquanto havia o governo Dilma assistiu-se a um forte levantamento social por causa do aumento de transportes, na onda de manifestações de junho de 2013, e agora, que há uma série de reformas no mercado de trabalho e cortes nas despesas sociais, as ruas parecem vazias a esse respeito.
Não estou de acordo. Esses movimentos de junho foram profundamente manipulados pelos média dominantes: foram glamorizados, foram promovidos, foram estimulados, e só depois se transformaram num grande movimento de massas que tinha população trabalhadora e estudantes, mas sobretudo foi um movimento de classe média, de ódio contra a esquerda, de ódio contra o comunismo e de ódio contra o PT.
Desde o seu início?
Principalmente desde o seu início, depois é que foi parcialmente ocupado por determinadas reivindicações sociais, para se tornar universal. Agora, se quer saber a minha opinião, eu acho que a presidenta Dilma, que é uma ilustre companheira com a qual eu tenho relações de amizade há mais de 40 anos, não conseguiu lidar corretamente com isso. Nem o partido lidou bem com isso. Eu, na altura, era governador do estado de Porto Alegre, o Rio Grande do Sul, e um dia tinha uma manifestação em Porto Alegre que envolvia cerca de 50 mil pessoas na rua. Essas pessoas não iam para o Palácio do Governo; uma pequena parte delas, cerca de 5 mil, foram para a frente do palácio, mas nós as chamámos para dialogar dentro do palácio. Nós tínhamos um gabinete digital que envolvia cerca de 5 milhões de pessoas em diálogo. Mas nós, no Rio Grande do Sul, fomos o único governo a fazer isso. Aquelas pessoas estavam lá com reivindicações reais e efetivas, que nós podíamos e devíamos discutir. Ora, o grande movimento que se deu nas grandes cidades era completamente manipulado pela [televisão] Globo. Tanto é que, quando a Globo deixou de apoiar, as pessoas foram para casa.
Falei consigo quando esteve na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, há uns anos, com o universitário Giuseppe Cocco, e ele não compartilhava a sua posição: sublinhava o caráter excecional daquela multidão e atribuía-lhe a capacidade de funcionar como uma espécie de poder constituinte, como teoriza Toni Negri. Pelos vistos, o resultado foi Temer.
O Giuseppe Cocco, de quem eu sou amigo e reputo de ser um intelectual brilhante, tem uma visão movimentista: acha que só no movimento é que é possível acontecer uma mudança política. E aconteceu uma mudança política, foi é uma má mudança.
Não acha que é arriscado colocar todas as fichas no Lula, sem haver plano B? Ele pode ser condenado e impedido de concorrer pela justiça. E, nessa altura, o segundo candidato mais bem colocado nas sondagens é Bolsonaro, que elogia a ditadura militar e apoia a tortura.
A justiça funciona no Brasil, em regra, como uma parte do Estado de direito normal; mas temos uma outra parte que funcional como se estivesse em estado de exceção: vai criando normas dentro do seu próprio movimento processual, aplica as regras antigas de uma maneira nova e cria até normas novas. Essa justiça de exceção está quase toda voltada contra o presidente Lula, com o objetivo de retirá-lo da corrida presidencial. E isso é claríssimo: parte do sistema de justiça participa nas discussões políticas e toma partido e emite opinião sobre os réus, os processos, e muitos deles são as pessoas que vão julgar os mesmos processos em várias instâncias.
É estranho que as elites brasileiras, nos quais esses juízes se incluem, vejam com calma a possibilidade de terem um presidente como o Bolsonaro.
Atenção, o Bolsonaro já está a ser esfriado. Ele foi promovido pela grande imprensa até ao momento em que caiu o governo Dilma. Agora, ele já está a ser denunciado como corrupto e fascista pela própria imprensa que já se serviu dele.
A Globo, a certa altura, começou a denunciar Temer como corrupto, mas ele conseguiu paralisar, no parlamento, todas as investigações da justiça sobre ele.
Mas o Temer é refém do sistema. Se ele não realiza as reformas que eles estão pedindo, ele cai fora. O assédio ao Temer é sempre parcial e contido. Nunca um governo teve tantas pessoas processadas e suspeitas de corrupção. Mas as elites e os média não pedem a saída do Temer porque esperam que ele faça as reformas da previdência e orçamental com o corte nas despesas públicas de educação e saúde.
É possível que, mesmo condenado, o Lula possa ser candidato?
Isso vai ser determinado pela correlação de forças. Nós temos a convicção de que ele tem de manter a candidatura e percorrer todas as instâncias de justiça mantendo a sua candidatura. E não falando no plano B. Aquilo com que a classe dominante brasileira tem de ser confrontada é que, se o Lula não concorrer, o próximo presidente brasileiro vai ser eleito sem ter conseguido vencer o Lula, e vai ser um presidente ilegítimo e não vai poder governar o país.
E a legitimidade impede-o de governar? Temer não tem muita e está no poder.
Mas veja que chegou com taxas de aprovação de mais de 40% e agora não tem 3%. É por isso que a constituição de uma frente popular política e de um programa é necessária para fazer esse combate. Não vai ser fácil. No Brasil, a oligarquia é muito poderosa e controla a quase totalidade dos meios de comunicação social.
Põe as mãos no fogo pelo presidente Lula?
Confio totalmente na honestidade pessoal do presidente Lula. Não excluo a possibilidade de que, no seu governo, tenha havido irregularidades, até graves, que eram herdadas dos funcionamento anterior corrupto de todo o Estado brasileiro.