O prédio de esquina situado a dois passos do Instituto Superior Técnico, em Lisboa, tem uma fachada como outra qualquer. Lá dentro, porém, um dos apartamentos é a morada de um modelo de habitação inédito para os idosos da capital: as repúblicas.
É no rés-do-chão que fica esta resposta social saída da imaginação de Pedro Cardoso, assistente social do Centro Social Paroquial de São Jorge de Arroios, que disponibiliza regimes de centro de dia e de noite. Esta república, relativamente perto do centro da cidade, foi a primeira a abrir – completou no passado mês de dezembro o segundo aniversário – e dá pelo nome de Rainha Dona Leonor. Foi totalmente renovada para o efeito, tem dois quartos e uma suíte, uma cozinha, uma casa de banho e um pátio. Acolhe três homens idosos.
“Comecei a detetar situações muito complicadas de pessoas que viviam em regime de subaluguer”, explica ao i Pedro Cardoso. “Viviam em casas com muita gente de outro tipo de condição e onde às vezes eram roubadas”, continua. Um dia, chegou-lhe às mãos uma situação particularmente complicada, “de uma senhora de 81 anos que foi bastante ofendida na sua dignidade como mulher”. Foi aí que o assistente social decidiu avançar e apresentar o seu projeto a entidades que podiam ajudá-lo a pô-lo em prática. “Depois de ir à Segurança Social, onde me disseram que não me podiam ajudar porque a ideia não se incluía dentro da nomenclatura das respostas sociais, fui à Santa Casa da Misericórdia quase como último recurso. Aceitaram o projeto.”
A ideia é simples: Pedro transpôs o conceito das repúblicas de estudantes para os idosos. Enquanto a Santa Casa da Misericórdia assegura o pagamento da renda da casa, os idosos dividem as despesas de gás, água, luz, televisão e internet. O apoio do centro social está assegurado e, todas as semanas, uma reunião com os moradores das repúblicas e um assistente social do centro resolve eventuais conflitos e garante que tudo está bem entre os colegas de casa. Aos moradores é exigido que cuidem do espaço, que é limpo semanalmente por empregadas do centro.
Que opções têm os idosos em portugal?
“As respostas que temos para lidar com as pessoas idosas não são suficientes”, defende Cardoso. “Esta não é uma resposta cara, é apoiada por uma instituição e há aqui uma oportunidade de a própria Segurança Social olhar para isto como uma resposta”, continua.
Para o assistente social, o Estado não tem sabido “acompanhar a evolução da sociedade e não tem conseguido dar respostas. Falta estratégia para as respostas sociais, particularmente para o envelhecimento”.
Em 2016, 17% dos idosos portugueses viviam em risco de pobreza – uma taxa calculada depois da transferência das respetivas pensões sociais. Os dados, ainda provisórios, são do Instituto Nacional de Estatística e foram recolhidos no mais recente Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, realizado em 2017 e referente aos rendimentos do ano anterior. Se em relação a 2015, quando a taxa chegou aos 19%, houve uma ligeira melhoria, os idosos que vivem nestas repúblicas são prova de que o país enfrenta um problema em relação ao qual não tem conseguido encontrar soluções.
“Não quer dizer que as repúblicas sejam a melhor resposta mas, para as pessoas com reformas muito baixas e que não têm nada que justifique darem entrada num lar e são autónomas, são uma resposta perfeitamente digna”, sublinha Pedro Cardoso. Em Portugal são poucas as alternativas para os idosos autónomos e com rendimentos baixos: ou ficam em casa de familiares, ou subalugam um quarto – contexto em que podem estar vulneráveis e que não é comportável para todas as carteiras –, ou vão para um lar. E, na perspetiva do responsável do Centro Social Paroquial de São Jorge de Arroios, “há um longo caminho a percorrer até à institucionalização. As repúblicas surgiram para que a primeira resposta não seja um lar”.
O assistente social está convencido de que este modelo tem todas as condições para ser implementado pelo Estado, “sobretudo nas cidades, para onde as pessoas vieram muito novas para trabalhar. Acabaram por perder laços familiares e foram ficando sozinhas, o que as levou depois a uma situação de subaluguer, de sobrevivência”, explica.
Desde a abertura da primeira república, já abriram outras seis. E o modelo já tem lista de espera, com sete idosos – cinco homens e duas mulheres. No início de 2017, a Santa Casa da Misericórdia deu aval para que fossem abertas mais duas. Contudo, explica Pedro Cardoso, as novas repúblicas ainda não avançaram porque tem sido difícil encontrar casas que correspondam aos critérios necessários – serem no rés-do-chão ou ter elevador, ter determinado número de quartos (quatro no máximo) e uma renda acessível.
Certo é que, lá fora, o modelo não tem passado despercebido. “Que eu tenha conhecimento, não existe em mais lado nenhum. Já nos vieram visitar professores da Eslováquia, França e Luxemburgo para o conhecerem”, conta Cardoso. Os três países têm uma taxa de idosos em risco de pobreza mais baixa do que a portuguesa.
Os rostos das repúblicas
Para viverem nas repúblicas, os idosos começam por ir a uma entrevista. Depois, o técnico do Centro Social Paroquial de São Jorge de Arroios encaminha-os para uma das residências, consoante as vagas. Cada república é, por isso, feita de pessoas diferentes, com feitios, gostos, origens e percursos diversos. “Eu digo-lhes muitas vezes, ‘isto é como um casamento, há dias bons e dias maus’”, conta Pedro Cardoso. Ainda assim, garante o assistente social, nunca houve problemas graves entre os moradores das repúblicas. “Houve só dois casos de expulsão”, diz.
Os moradores confirmam. José Manuel Pereira da Silva, 64 anos, mora na República Madre Teresa. “Na república onde estou nunca houve problema. Somos três, cada um mete-se na sua vida e pronto”, conta ao i.
É lá que vive há mais de um ano. Depois de a tropa o mandar para “o mato” por duas vezes, à segunda, em 1965, já não voltou para Portugal e ficou a viver na África do Sul. Só há três anos decidiu voltar, mas veio sozinho. “Tive problemas familiares e falta de trabalho”, por isso “entreguei tudo aos meus filhos e vim-me embora. Estava a contar com mais apoio das Forças Armadas cá, mas tal não sucedeu.” Tinha de ter descontado durante 15 anos para ter direito a uma reforma, explicaram-lhe. “Eu nunca fiz descontos para aqui para Portugal, África era praticamente Portugal”, recorda ao i. Por isso, quando voltou para o país, apenas teve direito à pensão de velhice.
Encontrou um quarto e ia comer ao centro social – pouco sobrava do dinheiro depois de pagar a renda. “O dr. Pedro perguntou-me se eu queria ir para uma república e eu disse que sim. E ali tenho muito mais condições do que onde estava: o quarto é muito maior, tenho internet, televisão… está tudo bem montado, parece o quarto de um hotel”, relata.
António Costa, 78 anos, está há dois anos na República de São Jorge – “o padroeiro de Portugal, embora tenha sido muito contestado a certa altura” – por causa de desentendimentos familiares. Tem um filho, mas estão zangados. “Um dia há de passar”, diz. Quanto à experiência, “tirando algumas situações em que algumas pessoas que habitam estas casas e que, com as suas idiossincrasias, são capazes de morder na mão do dono, tudo corre bem”, diz.
E como chegou à república? “Estive num quarto arrendado que a Santa Casa me arranjou, mas a renda absorvia a maior parte da minha pensão porque eu nunca descontei para a Segurança Social”. Trabalhou, entre outras áreas, em gestão imobiliária. “Tenho aqui uma família, toda aqui à volta, de gente boa”, diz.
Ercília Reis, de 72 anos, é a única mulher no grupo que conhecemos. Vive na única república feminina, a de Santa Marta, onde se diz “bem e confortável, com outras três colegas”. Antes morava num quarto. “Estava lá muito bem, mas um dia a senhora da casa disse que precisava do quarto para a filha, que vinha para Lisboa estudar, e tive de sair.”
Ercília foi à Santa Casa da Misericórdia procurar soluções e encaminharam-na para a república, onde vive desde dezembro de 2016. Tem três filhas, duas a viver no Alentejo e a terceira em Lisboa, com “uma vida muito ocupada”. “Não têm um quarto para mim, é assim…”, comenta.
Américo Amaro, 84, e António Almeida, 74, recorreram às repúblicas devido aos baixos rendimentos. “Trabalhei na Carris e tenho uma reforma de 400 euros. Antes vivia num quarto, mas não conseguia pagá–lo. O meu irmão arranjou esta solução e tudo tem corrido bem”, conta Américo.
Já António, antes de ali chegar, dividia casa com uma pessoa que faleceu. “Não tinha hipótese de pagar a renda sozinho”, diz. Uma assistente social do centro costumava levar-lhe as refeições a casa e foi através dela que foi para a República Dona Leonor, há um ano e meio. “Tenho família, mas é como se não tivesse”, lamenta. Trabalhou 25 anos na Papelaria Fernandes e a reforma é curta. “Estou muito bem na residência mas, ainda assim, tenho de esticar o dinheiro.”
O mais novo do grupo tem 57 anos e fala de uma experiência igualmente positiva na república onde está. É Arnaldo Pereira Martins, que trabalhava como jardineiro e foi despedido ao fim de quatro anos. Recebeu uma indemnização, não conseguiu arranjar emprego e recebeu o subsídio de desemprego durante três anos. “Depois, acabou-se”, recorda. Vivia com o irmão e com a cunhada. “A minha cunhada começou a chatear-me a cabeça, a ameaçar-me, não me dava de comer, não me deixava tomar banho. Entretanto, o meu irmão, que tem Alzheimer, entrava-me pelo quarto adentro durante a noite e começava a ameaçar-me. Tive medo que ele um dia aparecesse com uma faca ou assim, por causa da demência, e fui-me embora”, conta.
Recorreu à Santa Casa para arranjar um quarto e durante um ano e meio viveu num albergue em São Bento. Depois, quando começou a receber o rendimento mínimo, a Santa Casa arranjou-lhe um quarto, de onde saiu ao fim de um ano por falta de condições. “Em janeiro de 2017 estive 16 dias na rua e a assistente social conseguiu que voltasse para o albergue. Em fevereiro entrei na República de Santo António.” De vez em quando, vai visitar o irmão.
O modelo adaptado aos sem-abrigo
Quatro meses depois da abertura da primeira república, o Centro Social Paroquial de São Jorge de Arroios decidiu apostar numa resposta semelhante para os sem–abrigo. “Esta é a república mais estável, também porque as pessoas têm mais em comum, têm um percurso mais parecido. Estas pessoas sabem o que é ter falta e dão valor”, comenta Pedro Cardoso.
Chama-se República de Arroios e fica num primeiro andar da Rua Morais Soares. Tem três quartos – mais um, interior, para casos de emergência –, uma casa de banho, cozinha, pátio e uma sala. Não está tão nova como a República Rainha Dona Leonor, mas tem todas as condições. “Aqui só há televisão na sala, que é a divisão do convívio”, explica o assistente social enquanto faz a visita guiada.
Benedito Lima é um dos moradores desta república. Tem 62 anos e uma reforma “muito pequena”. “Se pagasse a renda, passava fome; se comprasse comida, dormia na rua”, diz. Foi à Santa Casa à procura de apoio com os medicamentos – tem uma hérnia discal e problemas nos ossos – mas, mesmo assim, o dinheiro não chegava e deixou de pagar a renda. Chateou-se com o senhorio e foi embora para a rua.
“Recolhia-me: ia para o Hospital de São José, ia para o aeroporto, e não andava por aí de manta às costas como certos indivíduos andam. Ia dormir e de manhã ia ao balneário tomar um banho. Tinha roupa guardada em casa de um amigo meu e ia mudando, e assim ia-me governando”, lembra. A assistente social encaminhou-o para o Exército de Salvação, onde esteve quatro meses. Depois arranjou um quarto na república e é lá que vive há sete meses. “À exceção da pessoa que foi expulsa, tudo tem sido muito bom”, confessa.
“Sinto-me bem e se não estivesse nesta república era complicado, porque não se consegue arranjar quartos assim tão baratos.”