Se há uma palavra para definir um filme como “Corpo e Alma” (“Teströl és lélekröl”, 2017), da cineasta húngara Ildikó Enyedi, essa palavra só pode ser estranheza. Uma palavra que, neste caso, tem a vantagem de rimar com beleza. Depois de quase duas décadas de ausência, Enyedi regressa com uma história singular, um filme que nos deixa de respiração suspensa, vencedor do Urso de Ouro em Berlim, do Sydney Film Prize, ambos em 2017, além de uma nomeação para o Óscar de 2108 na categoria de melhor filme estrangeiro. Isto para além de Alexandra Borbély ser vencedora do prémio de melhor actriz dos EFA 2017 (European Film Awards).
Estranheza é com efeito a sensação que invade o espectador logo nos primeiros minutos do filme. Uma floresta nevada e a indizível ternura entre dois veados. Um matadouro de Budapeste, a gélida paisagem industrial em contraste com o sangue, vísceras, carniça (no sentido deleuziano do termo) que a habitam. E uma história de amor irrompendo destes cenários improváveis com a súbita força de um degelo.
Esta talvez seja a primeira nota a sublinhar, uma belíssima e insólita história de amor, uma das mais intensas histórias de amor no cinema da última década, ao mesmo tempo delicada e brutal, terna mas despojada de sentimentalismos românticos. Minimalista, dir-se-ia, pela contenção das palavras, a (quase) ausência de entoação na voz ou pelo que nesta história parece reduzir-se à sugestão de um contexto emocional mais do que a um desejo narrativo. Despojamento que Ildikó Enyedi parece, de resto, ter procurado desde o início das filmagens: “Apenas quis contar uma história humana muito simples e comunicar com o espectador de forma muito direta”.
“Corpo e Alma” é uma história que surpreende, antes de mais, pelo confronto entre a frieza asséptica do matadouro (espaço anti-romântico por definição), a violência da morte como rotina quotidiana e a subtileza do amor que nasce entre duas almas solitárias, Endre, o director financeiro do matadouro e Mária, a nova inspectora da qualidade. Por razões que permanecem mais ou menos ocultas ao longo do filme, ambas as personagens têm cicatrizes do passado, feridas no corpo por sarar; ambas se mostram hermeticamente fechadas, anti-sociais, exiladas num corpo que não lhes pertence, entrincheiradas na sua solidão: intencional, no caso de Endre (Géza Morcsányi), ditada pela paralisia de um braço e pelo desencanto trazido pela idade; não intencional, traumática, no caso de Mária (Alexandra Borbély), patente na incapacidade em lidar com o outro, a começar pela alteridade que é o seu próprio corpo.
A estranheza do filme advém em grande medida desta mulher: a frieza do seu relacionamento com os outros, o excessivo rigor profissional, a memória prodigiosa, a ausência de emoções revelam a máquina oculta sob um corpo feminino. Uma máquina no meio de máquinas. Apesar da rasura do corpo e do silêncio que a envolve, a sua presença inquieta, preenche todo o espaço, vai tomando progressivamente conta do ecrã.
Um acontecimento inesperado no quotidiano do matadouro irá, todavia, aproximar estas duas almas solitárias: o roubo do pó de acasalamento (ministrado em certas circunstâncias aos animais) na sequência do qual é instaurada uma investigação interna que faz com que todos os funcionários sejam observados por uma psicóloga e instados a relatar o sonho da noite anterior. Descobre-se então que Endre e Mária, sem o saberem, partilham todas as noites um sonho comum: ambos se vêem como animais, enquanto veados que se encontram junto a um pequeno lago de uma floresta nevada. É este espaço onírico que irá atravessar a narrativa e acender o coração de neve dos dois solitários, obrigando-os a comunicar entre si, a descobrir o corpo, a descobrir-se no espelho das águas da linguagem. Tudo isto num ritmo narrativo sem pressas, onde o silêncio e a lentidão dos gestos, a atenção aos detalhes, a poesia do ínfimo têm um papel central que a câmara fixa nos dá a ver ao pormenor.
Se na memória cultural do espectador europeu este espaço onírico pode evocar a tradição das fábulas ou o imaginário da lírica medieval ocidental, e de um modo especial o das cantigas de amigo peninsulares, fortemente marcado pela presença dos cervos e das fontes, o filme não autorizará, contudo, uma leitura alegórica ou mesmo psicanalítica. Enyedi afirma ter apenas pretendido “construir a experiência de cinema mais elementar possível. E [ter] escolhi[do] uma história de amor porque se trata da mais extrema das formas de comunicação. É através do amor que nos abrimos completamente ao outro e que talvez nos consigamos ver a sério” (Rui Tendinha, Diário de Notícias, 21.12.2017).
“Corpo e Alma” é um filme sobre o amor mas também sobre a incomunicabilidade dos dias de hoje, ou pelo menos sobre as dificuldades de comunicação humana na era da informação e da comunicação global. Mária, a nívea mulher sem emoções, essa espécie de mulher biónica cuja memória se assemelha a um arquivo electrónico, humanizar-se-á através da experiência do amor com tudo o que isso implica de abertura ao exterior, de descoberta do corpo e de aprendizagem das sensações. De uma linguagem eminentemente táctil: é assim que a vemos a acariciar o pelo das vacas no matadouro, a mergulhar a mão num prato de puré, a deitar-se sobre a relva de um jardim e a deleitar-se com o jacto de água sobre o corpo. Ou auditiva, como a canção de Laura Marling, What He Wrote, a única música que conseguiu tocar-lhe a pele, dizê-la por dentro de modo tão profundo que é ao som dessa música que Mária cede à tentação do suicídio. O desejo de aproximação ao outro, de comunicação, é, no entanto, tão intenso que no momento em que o telemóvel de Mária toca (telemóvel oferecido por Endre), esta se precipita para atender, ainda que o sangue lhe escorra do pulso.
“Corpo e Alma” prende-nos pela sua humaníssima poesia, pelo silêncio e pela ternura do olhar ou densidade dos gestos. Pelo modo como nos toca e intimamente desassossega, como constitui uma poderosa reflexão sobre as relações humanas, desde as relações laborais às relações amorosas, sobre a solidez dos laços afectivos nestes dias em que tudo, nas palavras de Zygmunt Bauman, se liquefaz, incluindo o amor. O filme é uma melancólica, e ao mesmo tempo luminosa, reflexão sobre a desumanização das sociedades ocidentais, sobre o afastamento da natureza em nome de uma tecnologização crescente. Desconstruindo e invertendo a lição do platonismo amoroso ocidental, em certa medida reescrito pela tradição judaico-cristã, o filme vem chamar a atenção para a necessidade de resgatar o corpo enquanto meio privilegiado de comunicação com a natureza, de (re)pensar hoje o humano e a interacção com o mundo e com o outro.
A figura do animal que o filme convoca não visa uma qualquer hierarquia de poder ou moralizadora, mas antes o desejo de chamar a atenção para questões éticas e sociais nas sociedades contemporâneas. O animal “que portanto somos” (na expressão de Derrida) devolve-nos a uma “humanimalidade” comum, acorda em nós o sentido de co-existência na casa do mundo. Uma casa de almas solitárias onde o amor pode acontecer.