Às duas da tarde de Agosto em Tizi-Ouzou

Eu gosto de futebol. E de literatura. Aqui chegado, faço uma pausa ligeira, ligeiríssima. Bom, claro que também gosto de música e nada no mundo pode ser mais belo e mais dorido do que o amor de Rodolfo por Mimi ou do que a carga de ciúmes da Cavalaria Rusticana. 

É mesmo carga. E a brigada de ciúmes não é, de todo ligeira. Feita a pausa, segue-se outra. Porque eu gosto de literatura. E gosto de futebol. Mas mais do que isso tudo gosto de futebol na literatura e da literatura no futebol. «Joga a bola menino/dá pontapés certeiros na empanturrada imagem desse mundo…». Nada pode ser mais redondo e mais certeiro nessa órbita arbitrária onde os astros fingidos de Torga perdem a majestade.

Há gente que escreve maravilhosamente sobre futebol e eu ambiciono ser uma delas desde que me lembro de ler a velha A Bola, pomposamente, dignamente, a sete colunas, broadsheet, no chão de madeira do Quarto Grande, na Casa de São Bernardo, em Águeda, onde o meu avô Joaquim, que sabia muito sobre tudo, senão mesmo tudo sobre tudo, pouco ligava ao futebol e preferia mostrar-me, com o seu dedo indicador, suave e bem cuidado, como se subia o Irrawady em direção a Mandalay nos caminhos de Rudyard Kipling, e o lugar preciso do qual desaparecera Krakatoa, o ruído mais importante da história do mundo depois do Big Bang.

O problema quando se fala de futebol e de literatura e queremos colocá-los lado a lado, é que há sempre quem franza o nariz, ora de um lado ora do outro.

Acho que o que Rudyard Kipling escreveu mais próximo desse jogo foi algo como: «À medida que envelhecemos vamos ficando cada vez mais parecidos com a nossa própria sombra».

E, se a sombra não se descoser e não fugir, como na história de Peter Pan – pelo menos John Matthew Barrie, um baronete escocês que inventou a Terra do Nunca, adorava críquete e chegava até, imagine-se, a praticá-lo, embora de uma forma horrorosamente oposta à da que escrevia – também vamos envelhecendo e ficando cada vez mais parecidos com a nossa própria prosa o que, no que me diz respeito, me dá a impressão de escrever aqui, nesta página, a mesma coisa semana após semana, embora – confesso de mão direita sobre a Bíblia como bom agnóstico que sou – que não faço ideia qual o assunto que abordei há oito dias.

Espero que não tenha sido Camus. Hoje acordei com vontade de escrever sobre Camus e, vendo bem, vou mesmo fazê-lo.

Camus era uma figura, como gostava de dizer Otto Lara de Resende, mais um dos que escrevia bem sobre futebol, embora escassamente. Uma figura, portanto, esse Albert, nascido na Argélia Francesa, um pied-noir, na pavorosa expressão racista tão francófona, e ainda por cima com bons dois pés, fossem eles negros ou brancos, esquerdos ou direitos.
Mas as mãos eram melhores. Muito melhores.
E, lá está, aqui não falo de literatura: falo de futebol.

Ou melhor, falo de futebol e literatura tudo misturado, porque Albert Camus foi uma magnífica mistura dos dois.
Com as mãos escrevia e defendia a baliza do Racing Universitaire Argelois. Mas antes ainda passou pelo AS Monpensier, um nome apropriado para um intelectual da sua estaleca.

Aqui a doutrina divide-se de forma brusca: era o Alberto – desculpem lá a intimidade – ou não um guarda-redes de futuro? Recorde-se que a sua carreira morreu jovem, foi enterrada depressa e até deu um cadáver bonito, pelo menos por tudo o que se discute em seu redor. A culpa não foi das mãos, que duraram muito, mas dos pulmões que fraquejaram precocemente. Há um sem número de frases atribuídas a Camus com o futebol como tema. Quando soube que tinha tuberculose, filosofou: «Isto da vida é como a bola – estamos à espera que ela venha por um lado e, de repente, surge-nos por outro».
Por isso, guardou a vida e largou a bola.

Um dia quis voltar e ao fim de meia hora estava com os bofes de fora. Lamentou-se de uma forma sublimemente literária: «Quando, em 1940, resolvi voltar a calçar as chuteiras descobri que já não era ontem. Antes do intervalo já tinha a língua a roçar o chão como as dos cães kabiles que se encontram às duas da tarde do mês de agosto em Tizi-Ouzou». Nunca fui a Tizi-Ouzou em agosto às duas da tarde nem a nenhuma outra hora do dia mas consta que ao pé daquilo o Inferno não passa de uma escalfeta.
Lá está: futebol e literatura.

Nem Virgílio Ferreira, cujas manhãs submersas não se imergem de pontapé na bola, fugiu ao fascínio do episódio daquele desgraçado a quem amputaram uma perna e, na cama do hospital, sonhava com um penálti marcado com o pé que já lá não estava.

Mas Camus tem aquele toque futebolístico inconfundível de um jogador do RUA – Racing Universitaire Argelois. Porque o RUA era também política e a política era algo que Albert levava tão a sério como futebol. E, por isso, escrevia em O Estrangeiro: «Contra nós, jogavam sempre no limite da dureza. Ah! Estudantes, filhinhos dos papás, isso não se perdoava. Mesmo que muitos de nós fossem pobres como a fome». Por seu lado, o seu grande amigo, também escritor, Emmanuel Roblès, que ainda por cima era do Ouran, grande rival do RUA, respondia-lhe à letra: «Detestávamos o RUA até à morte! Ainda por cima eram argelinos. Azar! Argelino significava ser chique, ter nascido com o cu virado para a lua, uns mariolas, e também estudantes. Sim, sim, filhinhos dos papás, ò Camus!».
Por isso não me venham dizer que na literatura não há futebol!
Há sim. E do bom. Ou este não foi um grande jogo?

afonso.melo@newsplex.pt