Há fósseis portugueses a serem levados para outros países. O alerta é feito ao i por Mário Miguel Mendes, investigador do Centro de Investigação Marinha e Ambiental (CIMA) da Universidade do Algarve (UAlg), para quem esta é uma matéria “extremamente sensível” que coloca em causa “valores naturais e culturais relevantes”.
O problema é facilmente identificável. Portugal, explica o investigador, tem condições “excelentes” para o estudo da evolução da flora, reconhecidas quase em todo o mundo. “Essas características têm
despertado a curiosidade e o interesse de investigadores de outros países”, continua. É da Alemanha, França, Suíça, Suécia e Japão que mais investigadores se têm deslocado ao território português, conseguindo, com o apoio de cartas geológicas ou de GPS, “aceder às nossas jazidas e recolher material que transportam para os respetivos países de origem”.
A questão é que, em Portugal, ao contrário do que acontece com os vestígios arqueológicos, não há legislação que proteja as descobertas feitas no âmbito da paleontologia – ciência que estuda os fósseis de animais e plantas. Por isso, nada impede os investigadores estrangeiros de continuarem a transportar para os seus países fósseis que são património português.
A proteção adiada Mário Miguel Mendes recorda que, em tempos, a proteção e promoção do património paleontológico esteve na agenda do governo. “No governo de António Guterres, o ministro da Ciência e Tecnologia, José Mariano Gago, tentou fazer algo nesse sentido”, nota. Foi então criado um grupo de trabalho que registou “inúmeras recomendações sobre esta temática”. António Guterres, contudo, viria a demitir-se e nada se fez.
O novo governo, nas mãos de Durão Barroso, promulgou a lei n.o 107/2001, que se debruça “en passant”, diz o investigador, sobre o património paleontológico português. E, de facto, assim é: ainda que reconheça o seu valor patrimonial, a lei não estabelece qualquer proteção legal a esse tipo de património.
Lá fora, países há que valorizam o seu património paleontológico. É o caso do Brasil onde, como recorda Mário Miguel Mendes, durante anos ocorreu tráfico e comercialização de fósseis raríssimos extraídos das entranhas da bacia do Araripe. “A maior parte desses fósseis eram transportados para a Europa e o Museu de História Natural de Berlim, por exemplo, possui uma coleção riquíssima de vegetais fósseis oriundos da região do Cariri”. Consciente disso, o governo brasileiro proibiu “a exportação e comercialização de fósseis”, ao mesmo tempo que a polícia federal tem vindo a desenvolver um importante trabalho “no âmbito do tráfico de fósseis”, acrescenta o investigador.
Uma viagem ao passado Portugal é um local particularmente frutífero para a investigação de fósseis na evolução da flora. Mas porque é assim? Mário Miguel Mendes explica que o país “tem uma geologia com características que possibilitam acompanhar as principais etapas de evolução das plantas”. Em território português é possível encontrar rochas que datam do Proterozoico Superior, há 1000–542 milhões de anos.
O investigador leva-nos de volta ao passado, como quem conta uma história. Há cerca de 320 milhões de anos, Portugal começava a ser povoado por cordilheiras de montanhas com lagos, habitat de vários tipos de vegetação. “Havia cavalinhas gigantes (Calamites) e plantas afins de licopódios e selaginelas atuais mas de porte arbóreo (Sigillaria, Lepidodendron), a par de coníferas que lembravam araucárias. Os fetos eram particularmente abundantes e diversificados”, descreve Mário Miguel Mendes.
Depois, as colisões dos continentes constituíram o supercontinente Pangeia e resultaram em alterações no clima. Estas alterações tiveram consequências para a vegetação: no final do Paleozoico, há cerca de 300 milhões de anos, muitas plantas extinguiram-se e perto de 90% dos seres vivos desapareceram.
Entretanto, no Triásico – há 225 milhões de anos –, “as plantas foram povoando as imensas áreas continentais semidesérticas”, prossegue Mário Miguel Mendes. No Jurássico – há 200-150 milhões de anos –, “as coníferas dominavam a vegetação arbórea”. Há 140 milhões de anos, no Cretácico, desenvolviam-se plantas que se acredita relacionarem-se com as primeiras angiospérmicas – plantas com flor –, “que hoje dominam todos os ambientes terrestres”. No seio da comunidade científica, esta súbita ocorrência foi motivo de espanto ao longo de gerações. Charles Darwin, por exemplo, considerava o fenómeno “um mistério abominável”. Hoje, sabe-se que o desenvolvimento das plantas com flor terá acompanhado a evolução dos insetos.
Tesouros por descobrir Portugal é especialmente rico em vestígios desse período. “A flora cretácica portuguesa é extremamente rica”, nota o investigador. “Tem características que permitem acompanhar a evolução florística desde o Cretácico Inferior – com predomínio dos fetos, coníferas, ginkgos, cycas, Bennettitales e outros grupos de plantas já extintos – até ao Cretácico Superior, quando as angiospérmicas colonizaram praticamente todos os ecossistemas terrestres”, continua.
E porque é interessante para a ciência estudar a flora fóssil? “As plantas são organismos extremamente sensíveis às alterações climáticas em escala continental” e refletem as modificações do ambiente terrestre. Por isso, o estudo das plantas fósseis tem “grande interesse”, pois permite verificar “anomalias de temperatura e de precipitação”, explica Mário Miguel Mendes.
O processo No trabalho de campo, ao descobrir-se um novo fóssil, a paragem seguinte é o laboratório. As amostras de sedimento recolhidas começam por ser submetidas a ataques químicos com ácidos “a fim de eliminar toda a fração mineral”, explica o investigador.
As amostras são depois lavadas com água destilada, tarefa que se estende por duas a três semanas “devido à existência de restos vegetais incarbonizados (carvão)”. O objetivo é, no final, obter “resíduo palinológico (relativo a palinologia, ramo da botânica que estuda o pólen e os esporos, recentes ou fossilizados), onde se encontram os esporos (partícula reprodutora das plantas) e os pólenes”.
Nem os esporos nem os pólenes podem ser observados à vista desarmada. Por isso, os investigadores recorrem a um microscópio ótico. Os pólenes e esporos identificados durante a observação são então “identificados e fotografados”.
A par do microscópio ótico, os investigadores recorrem também ao microscópio eletrónico de varrimento, que lhes permite observar “as ultraestruturas (estrutura detalhada) dos espécimes”. Também essas são identificadas e fotografadas.
Novas descobertas A par do trabalho desenvolvido no Centro de Investigação Marinha e Ambiental da Universidade do Algarve, centrado na investigação e análise da flora fóssil, Mário Miguel Mendes tem vindo a colaborar também com outras equipas e a fazer várias descobertas na área da paleontologia ao longo dos últimos anos. A mais recente foi revelada ao mundo em junho de 2017, num artigo em coautoria com Else Marie Friis e Kaj Pedersen publicado na revista científica “Grana”: é uma nova flor, Paisia pantoporata, e foi recolhida na jazida de Catefica, perto de Torres Vedras.
A nova flor é uma descoberta importante porque, como explica ao i Mário Miguel Mendes, os investigadores acreditam “tratar-se de uma flor pertencente a uma linhagem já extinta. É a primeira flor do Cretácico Inferior de Portugal, descrita até ao momento, que apresenta pólenes pantoporados (designação que diz respeito à estrutura da parede dos grãos de pólen, com pequenos espinhos e perfurações)”. Os nomes são complicados mas, para quem trabalha nesta área, são valores que importa proteger. A equipa acredita que a organização floral do fóssil “e a presença de pólenes pantoporados sugere afinidade com as Ranunculales (ordem dentro das angiospérmicas, plantas com flor)”.