TEERÃO – O Estádio Azadi chega a levar, de quando em vez, 90 mil pessoas ou mais, mas desta vez ficou-se pelas 20 e tal mil. Não perderam grande coisa, vendo bem, os que decidiram não pagar bilhete para ver o Esteghlal contra o Pars Janoubi Jam. Até terão poupado uns riais, já que a disputa entre o quinto e o sexto classificados de um campeonato dominado majestaticamente pelo Persépolis – que, ela por ela, conta com qualquer coisa como 30 milhões de adeptos – foi assim um pouco, como direi, para o emoliente, muito ao género de um chá de camomila ou de cavalinha.
Enfim, estar em Teerão e não ir ao futebol também não se faz, o povo por cá é fanático até aos alicerces, há sempre um espetáculo à parte para quem pretende distrair-se do jogo em si, e havia até uma certa curiosidade em espreitar esse tal Pars Janoubi Jam, que pode ter nome de sobremesa indiana, mas já andou umas semanas largas no primeiro lugar antes de ter desatado a vender o que podia e o que não podia de forma a descer ao nível já não direi do meu Recreio de Águeda, mas talvez do Oliveira do Bairro, os famosos Galos do Botaréu e Falcões do Cértima do tempo das rivalidades bairristas e bairradinas.
Não foi o desconsolo total, mas tanto o desacerto de gente sem conserto incomodou aqui e ali, sobretudo por via de um ponta-de-lança compridão e trapalhão que andava lá pelo ataque do Pars a chutar de bico bolas cheias de carapaus. Pelo menos divertia a malta e fazia lembrar que o grande Nicolau, da Académica, até era avançado de inegáveis recursos, comparação feita à distância dos quilómetros e dos anos, claro está.
Ganhou o Esteghlal por 4-0. Sendo a equipa da casa, a malta saiu contente. Já havia a essa hora um frio cristalino de estranhar num céu claro que nesta cidade se costuma esconder em fumaças poluentes, de tal ordem que ainda anteontem um encontro foi adiado porque o relvado/ervado estava coberto por tantas partículas nocivas que parecia, mal comparado, uma daquelas noites em que o Nacional costuma (não) jogar em casa, lá para os lados da Choupana.
Tourada Pela manhã, a sala de congressos do Hotel Olimpic não levou tanta gente como o Azadi da tarde, mas houve um corrupio valente em redor de Carlos Queiroz, aqui no Irão a bater recordes de popularidade. Fotos daqui, fotos dali, selfies e mais umas poses apatetadas, e o desgraçado do professor a ver–se grego para começar uma palestra que foi longa e de um homem só, baseada na forma como dirigir grupos e estabelecer objetivos comuns com ambição de resolver problemas, ao mesmo tempo que se melhoram resultados. Selecionador há sete anos, vai agora para a sua segunda consecutiva fase final de um campeonato do Mundo. “The road of fortune!”, berrava um cartaz vistoso.
Senhores e senhoras bem-postos, chefes de departamentos, diretores executivos, administradores e o diabo a sete ouviram-no em inglês, com uma ou outra ajuda do tradutor para farsi quando se tornava necessário sublinhar determinado ponto de vista.
Mais seleta do que a multidão do estádio, esta batia palmas contidas. Alguns pigarreavam, como se ouvissem um fado de Coimbra. “Não devemos querer ser patrões; devemos aprender a ser líderes”, ia dizendo Carlos Queiroz. “Não queremos ser temidos; queremos ser respeitados.” E, depois, um momento português até ao tutano para demonstrar o que deve ser a solidariedade. Uma tela acende-se, um touro raivoso, vermelho de feridas, baba escorrendo das ventas espessas, explode na arena. Os forcados são atirados pelo ar como palitos, um deles agarra-se à fera como se disso dependesse a própria vida e não ficasse, pelo contrário, mais perto da morte.
“As feridas queimavam como sóis”, escreveria Lorca.
O homem solta-se. Folha de papel tombada na terra batida.
O touro investe contra o caído. Um cartucho amachucado.
E depois, os outros. Os outros, não: um só!
Deitam-se sobre o companheiro arremetido. Quatro, cinco… Uma concha que se fecha perante a fúria indiscriminada do bicho bruto.
Na sala, o silêncio também é bruto.
O animal marra a esmo o escudo da solidariedade humana. Depois desiste. E as luzes fecham-se.