A candidata do PCdoB (Partido Comunista do Brasil) é jornalista, mas nunca chegou a exercer. É um caso de sucesso eleitoral. Foi a mais nova vereadora de sempre de Porto Alegre, com 22 anos. Em 2010 foi eleita deputada federal com 482 590 votos, a maior votação num deputado no Rio Grande do Sul e uma das maiores do Brasil. Numa altura em que Lula está sob fogo, os partidos de esquerda unem-se contra a tentativa de impedir a candidatura do ex-presidente, mas defendem candidatos diferentes à presidência da República. Manuela d’Ávila, que veio a Portugal para participar num debate organizado pela Fundação José Saramago e o CES, é a candidata presidencial dos comunistas.
Há uma anedota que conta que, um dia, um dignitário britânico encontrou-se com o seu homólogo soviético e ter-lhe–á dito: “Sabe que eu sou de origem operária e o senhor é de uma família aristocrática?” Ao que o soviético lhe respondeu: “É verdade, ambos traímos a nossa classe.” A comunista Manuela d’Ávila, filha de uma juíza e de um engenheiro, sente-se assim?
Conheço essa anedota (risos). Mas não, por uma razão. O meu pai é professor universitário, um engenheiro que dedicou a vida a dar aulas numa universidade pública no Brasil; e a minha mãe, ao conseguir ser juíza, tem uma história que inspira mulheres porque veio a ser juíza depois de ter abandonado o estudo de Direito para casar e ter filhos. Era como a família dela entendia que devia ser. E ela se reinventou completamente, aos 30 anos, vindo a tornar-se juíza. Eu não me sinto fazendo parte da burguesia, até porque os trabalhos que eles exercem implicaram uma história de luta pessoal e dignificaram o espaço público.
Há um escritor da sua terra (Rio Grande do Sul), que infelizmente já morreu, Moacyr Scliar, que tem uma história muito engraçada, em que Marx, depois do falhanço das revoluções, é pressionado pela mulher a emigrar. Ela diz-lhe que revoluções vitoriosas são tão possíveis como pessoas com seis dedos nos pés. Ele vive em Porto Alegre e, quando morre, ao tirarem-lhe as botas, descobrem que ele tem seis dedos nos pés. Considera que é possível uma revolução no Brasil?
É preciso um mundo completamente diferente do que existe atualmente. E, nesse mundo, o Brasil também precisa de ser completamente diferente do que é. Mas não pode ficar pelo Brasil, o mundo todo precisa mudar. Há uma crise que abala todos os países, tirando emprego e habitação. É preciso, mais do que nunca, que as mulheres, os trabalhadores e muita gente lutem por uma saída. Acredito que essa saída é a construção de um socialismo com a cara do nosso país. Não existe uma receita e uma fórmula de como será construído o socialismo no Brasil. A história mostra-nos que todas as tentativas de criar uma receita única de como seria deram errado. Respondendo à pergunta que fez: sim, eu acredito nessa revolução.
“Eu não me sinto como fazendo parte da burguesia, até pela forma como os meus pais trabalham”
Como se tornou comunista?
Desde criança, eu achava que as coisas precisavam de mudar profundamente. Vivi numa cidade muito pequena chamada Pedro Osório, no interior, perto da fronteira com o Uruguai. Recordo-me que tinha dez anos e que não compreendia porque havia um menino que não tinha casa para morar. Era um menino de rua, que na década de 80 era muito comum no Brasil. Aos 16 anos entrei na universidade onde estudei Jornalismo e Ciências Sociais e começou a ficar mais claro para mim esse sentimento de indignação contra as desigualdades e a necessidade da solidariedade. Foi transformando-se num sentimento político que levou à minha adesão ao PCdoB [aderiu em 1999 à organização juvenil do PCdoB, a União da Juventude Socialista, e ao partido em 2001].
Qual a análise que o PCdoB , aliado no governo do PT, faz dos governos de Lula e de Dilma?
Em primeiro lugar, foram governos que fizeram grandes transformações no país. Basta dizer que, durante esses anos, foram retiradas 36 milhões de pessoas da miséria. Foram governos que criaram uma política nacional de salário mínimo. O Brasil não tinha medidas estruturais para melhorar a vida do povo. Tarso Genro, com quem participei num debate em Portugal e foi ministro da Educação, fez transformações avassaladoras na democratização do acesso ao ensino superior no Brasil, seja com o Prouni, colocando os estudantes mais pobres nas universidades privadas, seja com a gestão do acesso das universidades públicas. Para além disso, a importância do Brasil no cenário mundial, na busca de soluções de paz e mais solidárias, cresceu muito. Lembro-me de algumas coisas, mas a mais importante talvez seja o papel do ex-chanceler dos Exteriores, Celso Morim, nesse sentido de conseguir uma política mais solidária que envolvesse os países do hemisfério sul [a formação de coligações de países com o G-20, o G-3 (Fórum com Brasil, África do Sul e Índia) e o BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China)]. São governos que fizeram transformações importantes; o problema é que, num segundo momento, aconteceu uma crise económica mundial que, embora com algum atraso, também chegou ao Brasil.
Não se pode dizer que apesar dessas políticas e de alguma alteração na redistribuição dos rendimentos para os mais pobres, não há nenhuma alteração estrutural que torne mais justa a economia brasileira?
Nós, do PCdoB, e outras pessoas, incluindo gente de dentro do PT, já dizíamos que era importante fazer um conjunto de reformas estruturais. Defendíamos que o que devia unir um campo político era uma perspetiva de projeto de país. Um projeto que necessita de várias reformas: a dos média, que no Brasil trata-se apenas de regular aquilo que a Constituição já diz, que o monopólio não pode ser permitido no país; a reforma da política, de modo que a política possa transformar e melhorar a vida do povo.
Mas não aconteceu exatamente o contrário? O PT e os seus aliados, em vez de reformarem a forma de fazer política, acabaram no esquema político de compra de influências do costume e na necessidade de fazer alianças com partidos duvidosos?
Para mim, o que justifica a aliança é o projeto. É ele que dita a natureza e a necessidade das alianças, e não o contrário. Foi com elas que nós aprovamos o Prouni. Mesmo para existirem movimentos sociais fundamentais para, por exemplo, pressionar os parlamentos para que boas leis sejam aprovadas, é preciso ter uma enorme clareza no projeto. Regra geral, as eleições brasileiras são muito complexas. Basta perceber que durante alguns governos do PT, esse partido tinha apenas 18% dos deputados do parlamento e o PSDB outros tantos, o que fazia que nem mesmo os dois maiores partidos, juntos, ultrapassassem os 36% dos eleitos. Essa necessidade de um diálogo, com amplos setores, é colocada pelo povo. Quem fragmenta o parlamento, do ponto de vista do número de partidos e da diversidade dos eleitos, é o povo com o seu voto nas eleições. Para nós, isso só se resolve, dentro das regras que nós temos, com um projeto político para o país.
“Recordo-me que tinha dez anos e não compreendia como era possível que um menino não tivesse casa”
Desde a eleição de Lula, passando pela sua reeleição e, depois, dos mandatos de Dilma Rousseff, verifica-se que Lula foi eleito com o voto das camadas urbanas das grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, e, posteriormente, o seu eleitorado passou a estar nas zonas mais pobres do Nordeste. Como se explica essa mudança?
Há muitas razões, algumas delas ligadas às pautas [assuntos] que falamos, como a não transformação da política. Também devemos pensar positivamente os votos que ganhámos: as pessoas que transformam o Lula nesse ícone da política brasileira são as pessoas que têm as suas vidas transformadas. Há uma frase – já que contou uma piada da União Soviética – de um cidadão que também foi importante lá, um Vladimir [Ilitch Ulianov, mais conhecido por Lenine] (risos), que dizia que “a prática é que é o critério da verdade”. Então, essas políticas sociais foram a prática que transformou a vida das pessoas. O que poderia transformar a vida dessa classe média [que inicialmente votou Lula]? Primeiro, do ponto de vista concreto, investimentos na infraestrutura urbana, que aconteceram, sobretudo na altura da Copa do Mundo, mas de forma muito menor que o necessário. Isso apesar da origem dos protestos, que são manipulados e robotizados…
Está a falar dos protestos de junho de 2013?
Sim. Apesar dessa origem manipulada, as primeiras causas que levaram as pessoas para a rua tinham que ver com os aumentos dos transportes e com questões variadas ligadas à infraestrutura urbana, digamos assim: preços dos bilhetes, a ausência de transportes de qualidade, etc. – muito embora os poderes do governo nacional do Brasil nessas matérias sejam muito pequenos. Pode-se dizer que faltou clareza dos partidos do governo nestas questões. A perda de votos de determinadas camadas sociais também pode ser entendida pela falta de capacidade de enfrentar o tema da violência no Brasil, uma violência que cresceu muito nas grandes capitais, nesse período. Essa sensação faz com que as pessoas se sintam descontentes com quem governa, mesmo que essas questões não sejam uma responsabilidade exclusiva da união, já que muitas destas questões são geridas diretamente pelos estados.
Como é possível que o movimento de junho de 2013, que começa com uma revolta a partir de um aumento dos preços dos transportes, se estenda por todo o país; e que hoje, perante um conjunto de reformas das leis laborais e outras, não se veja uma grande mobilização popular?
Há várias razões para essa diferença. Por exemplo, há estudos científicos que mostram o tempo dedicado pelos vários telejornais do Brasil às movimentações sociais de junho de 2013. Essa cobertura foi avassaladora. É importante perceber essa diferença e a capacidade que os movimentos sociais têm de se amplificar e chegar ao mais profundo das massas sem a difusão que, por exemplo, a Globo deu aos protestos contra o governo a partir de 2013.
Mas esperar pela conversão da família Marinho à esquerda não me parece previsível.
Aquilo que eu disse serve apenas para explicar algumas diferenças. Mas é preciso sublinhar que a maior greve geral, que aconteceu no Brasil, foi agora, e foi feita contra a reforma trabalhista [reforma das leis laborais]. Por outro lado, há uma ideia errada que [junho de 2013] começou por causa dos transportes. Em São Paulo começou por causa disso, mas as manifestações foram nacionais e aconteceram por pautas [reivindicações e motivos] diversos. O tema que unificava razoavelmente os protestos era a questão da infraestrutura urbana, mas também não era a única. A imagem dos protestos ficou marcada por São Paulo, dado que é a maior cidade.
“Aquilo que justifica alianças são projetos. As alianças devem ter um projeto político para o país”
No Brasil, para além de haver uma marcada divisão de classes e desigualdade, existe também uma questão racial com muito peso, a que acrescem zonas pobres das cidades que são dominadas pela criminalidade. Como é possível fazer política neste contexto?
A questão racial tem muito peso no Brasil. Essas zonas pobres de que fala são a maior parte do Brasil. Em relação à criminalidade, uma das razões que fizeram com que a classe média aderisse aos protestos foi o facto de já não existir repressão [separação] territorial. A classe média passa a viver os dramas dos negros e negras. Aliás, os trabalhadores brasileiros são maioritariamente negras e negros: a questão racial e a questão de classe estão muito ligadas. A classe média passa a viver a insegurança e o medo que as classes trabalhadoras já viviam no Brasil. Um amigo meu que trabalhou no Ministério da Justiça fez-me uma provocação que eu acho que é necessária para pensar. Qual é a provocação? Nós [a esquerda], durante décadas, quando falávamos de violência, dizíamos que ela estava ligada às enormes desigualdades sociais. Mas hoje temos que perceber que esse tema é, em si mesmo, um tema estruturador das desigualdades no Brasil: não é apenas uma consequência, mas é estrutural para que as desigualdades se agravem e permaneçam. As pessoas moram em bairros violentos; morando aí, elas têm dificuldade em conseguir emprego. Para além disso, temos um sistema em que há a maior população carcerária do mundo, tirando os EUA. As pessoas que são presas, uma vez na cadeia, serão sempre “presas”, mesmo que tenham cumprido as suas penas: serão para sempre ex-presidiários e também não conseguirão arranjar emprego. Temos mais de 60 mil mortos por ano, sobretudo de jovens e negros, que morrem de forma violenta. Estamos falando também de 60 mil famílias afetadas. Um dos desafios da esquerda é conseguir desenvolvimento e paz, garantir que o nosso povo viva em paz. É preciso também fazer o balanço da política da guerra das drogas no Brasil e no mundo todo: aqui, o saldo dela são 60 mil mortos por ano. O Brasil precisa de fazer essa discussão. A droga tem de ser tratada como uma questão de saúde pública, para que os números de mortos não sejam superiores aos de uma guerra. Um problema desta dimensão não pode ficar restrito a uma questão de debate moral sobre as drogas que achamos corretas ou incorretas que as pessoas consumam. Não é um debate simples nem pode ser feito por decreto.
A violência não é também aquilo que alimenta votações como as do Bolsonaro?
Tenho a certeza que sim. O que faz o pior às pessoas é o medo em relação ao futuro. A crise e o desemprego aumentaram esta sensação de medo e falta de perspetivas. Soma-se a isso o medo físico e a sensação real, mas muitas vezes amplificada nos média, da inexistência de um Estado capaz, e as pessoas começam a buscar alternativas absolutamente fora do Estado. O que é o Bolsonaro? Alguém que alimenta o ódio das pessoas. Se o Estado não é capaz de responder aos desafios que tem na área da segurança pública, há pessoas que acham: “Eu vou responder por mim. Eu quero que, pelo menos, o Estado legitime a minha ideia que bandido bom é bandido morto, porque eu quero matá-los.” Cria-se a ideia que se pode resolver as coisas individualmente, quando é preciso perceber que a média de desigualdade nos países europeus é de dez para um, nos países escandinavos é de seis para um e no Brasil é de 30 para um.
É pré-candidata. Isso significa que, se Lula concorrer, pode não ser candidata ou será sempre candidata?
Utilizando a frase no português de vocês: serei sempre candidata. A gente fala que serei candidata pra valer e ir até ao fim. A minha candidatura também tem o compromisso de denunciar o que pode ser a ausência de Lula no processo eleitoral. A esquerda tem dois objetivos centrais nestas eleições: a primeira é garantir que elas decorram de forma livre e democrática; e, a seguir, conseguir perceber que a democracia está ameaçada: a ameaça ao Lula é a ameaça à democracia no Brasil. A questão não fica pelo Brasil: parece que, em todo o mundo, o capitalismo parece prescindir da democracia. Mais uma vez, a América Latina parece ser o laboratório dessa tendência, como foi no tempo das ditaduras militares. O segundo debate é se o Brasil vai ser coadjuvante, com o Temer, de um neoliberalismo cruel que administra a vida das pessoas ou vai ser protagonista de arranjar saídas diferentes e melhores no mundo para as trabalhadoras e trabalhadores.
Perfil
Nasceu em 1981. Veio a Portugal para participar num debate com Tarso Genro e Carvalho da Silva. A jovem candidata comunista às presidenciais de 2018 é jornalista de profissão. Foi deputada federal entre 2007 e 2015, e líder do PCdoB na câmara dos deputados em 2013. Atualmente exerce o mandato de deputada estadual.