As esperanças conservadoras norte-americanas de limpar o ar pesado que paira há muito sobre o governo depositam-se por estes dias num pequeníssimo documento de três páginas a que vêm chamando, em porções semelhantes de mistério e promessa, o “memo”. Trata-se de um documento ultrassecreto, redigido pela equipa de um dos mais leais homens que o presidente tem no Congresso, Devin Nunes, e que alegadamente conta como no período eleitoral um grupo de agentes do FBI usou informação conseguida com dinheiro democrata para justificar uma escuta a um alto responsável da campanha de Donald Trump.
Isso, pelo menos, é o que prometem Nunes e o punhado de republicanos que leram o documento, que deve ser publicado ainda esta semana ou, o mais tardar, segunda-feira. Comentadores e figuras conservadoras, assistindo às voltas que o procurador especial Robert Mueller vai descrevendo em torno do círculo íntimo do presidente, agarram-se à promessa do documento de Nunes: se é verdade que o FBI, ainda sob o governo de Barack Obama, alimentou a investigação aos laços russos de Trump com informações angariadas, mesmo que indiretamente, pela campanha democrata, então há uma via aberta para a tese de que tudo se trata de uma conspiração de Estado contra Trump.
A verdadeira conspiração, no entanto, parece ser a criada por Nunes. Na quarta-feira, o novo diretor do FBI e o vice-procurador-geral norte-americano foram à Casa Branca para tentar convencer o presidente a impedir a publicação do documento. Não o conseguiram, como seria de esperar, mas, em comunicado, Christopher Wray – que Trump escolheu para suceder a James Comey na direção do FBI – e Rod Rosenstein, o mais alto funcionário do Ministério da Justiça ligado à investigação russa, defenderam que o memorando não deve ser publicado.
Dizem-se ambos “muito preocupados” com “as omissões de material que prejudicam fundamentalmente a correção do memorando”. Os democratas no Comité dos Serviços de Informação, que aprovou a publicação do documento, diz o mesmo e defende, além disso, que deve ser autorizada a publicar um documento próprio, contrariando e explicando as omissões do de Nunes. Na segunda-feira, foram impedidos de o fazer.
Contra Mueller
O documento pode ter consequências que vão para lá dos normais debates em realidade paralela que pululam por Washington. Os conservadores norte-americanos tentam há meses enfraquecer a investigação de Mueller sobre os casos da ligação russa e possível obstrução à justiça. O “memo” de Nunes é apenas a mais recente encarnação deste esforço e pode comprometer a reputação de Rod Rosenstein, que é um dos nomeados de Trump, mas é também um procurador de carreira que age com muita independência – “está do meu lado?”, ter-lhe-á perguntado recentemente Trump, diz a CNN.
No documento, Rosenstein é nomeado como um dos responsáveis pela escuta telefónica a Carter Page, alegadamente fundamentada com informações do dossier em que um antigo espião britânico diz que Trump está comprometido pelo KGB. Ora, Rosenstein é também o homem que substituiu Jeff Sessions na ligação do Ministério da Justiça à investigação de Mueller quando o procurador-geral se afastou do caso contra a vontade de Trump. É ele quem aprova ou limita as ações do procurador especial e o presidente pode servir-se das alegações de Nunes para o despedir sem grande alarido. Os democratas podem contestar o “memo”, mas terão mais dificuldades porque as informações que o podem desdizer são confidenciais.