“O meu livro só é subversivo para as pessoas que defendem ditaduras”, dizia-me em 2015 Gene Sharp, por telefone, com uma voz frágil e meio sumida que dificultava a comunicação. O homem que dedicou a sua vida ao estudo das lutas não violentas para derrubar regimes opressivos continuava, no entanto ativo e interessado, trabalhando no seu gabinete na instituição que criou em 1983 a Albert Einstein Institution.
O quatro vezes nomeado para o Nobel da Paz, que no domingo morreu aos 90 anos na sua casa em Boston, nos Estados Unidos, mas cuja notícia da morte foi apenas divulgada na terça-feira, escreveu numerosos livros e ensaios, mas trouxe influência sobretudo pelo seu manual para fazer cair ditaduras pacificamente chamado “Da Ditadura à Democracia” – escrito em 1993, publicado em 1994 (editado em Portugal pela Tinta da China em 2015), influente nos movimentos que levaram à Primavera Árabe, base para a detenção dos 17 ativistas angolanos (o caso conhecido como dos 15+2) por tentativa de rebelião.
“O meu livro não tem mesmo nada a ver com golpes de Estado é uma obra sobre formas pacíficas de mudança”, dizia então na entrevista publicada no site Rede Angola. “A ideia de as pessoas pensarem por si próprias, decidirem em conformidade com o que pensam e expressar as suas opiniões através da ação. É isso que aterroriza os ditadores”, adiantava o antigo professor de Ciências Políticas da Universidade de Massachusetts em Dartmouth.
O maior teórico da luta não violenta desde Mahatma Gandhi, Sharp criou uma área de estudos académicos sobre a prática estratégica da ação não violenta e os seus livros e ensaios foram traduzidos em mais de 50 línguas. A base de todo o seu pensamento e reflexões está expressa no prefácio de “Da Ditadura à Democracia”: “Procurei refletir cuidadosamente sobre as maneiras mais eficazes de desintegrar ditaduras com o mínimo de custos em termos de sofrimento e perda de vidas humanas”. Na entrevista, além de sublinhar a sua oposição veemente ao uso da violência, explicava que “se não queremos uma rebelião, é preciso dar às pessoas formas pacíficas de expressar aquilo que querem”. Porque, sublinhava, “não se alcança a paz esmagando a dissidência”.
Para o velho professor, todo o seu pensamento se concentrava numa ideia, essa de que “as ditaduras têm medo dos meios pacíficos” e que um protesto que assuma essa componente pacifista deixa muito nervosos os governos mais opressivos. “Quando os ditadores mandam prender adolescentes mostram que estão nervosos, porque sabem, melhor que qualquer outra pessoa, quando os seus regimes estão enfraquecidos. Mandar prender um jovem de 19 anos é sinal de que o regime está muito fraco”, afirmava Sharp. E sendo certo que em Angola o regime não caiu, a maioria continua a pertencer ao mesmo partido (MPLA), não é menos real que o presidente José Eduardo dos Santos deixou o poder ao fim de 38 anos.
Honrado
Quando questionado sobre o facto de o colocarem como pensador ao nível de Gandhi e de Martin Luther King, dizia “tento sê-lo” e sobre o facto de “Da Ditadura à Democracia” ter tido tanta influência, mostrava-se “muito honrado por isso”.
“Eu escrevi este livro porque há pessoas que vivem sob opressão e que sofrem, são segregadas e agredidas e torturadas na prisão e precisam de ajuda para saber como agir para se conseguirem libertar. Não sou eu que consigo a liberdade, são as pessoas agredidas e torturadas ou presas que se libertam a si mesmas”, explicava.
Para Sharp, recorrer à violência para derrubar uma ditadura era apenas estúpido e contraproducente, “porque as ditaduras têm à sua disposição todos os meios para exercer a violência”, “todas as armas, todas as bombas, todos os meios de tortura, todas as prisões”. Daí que questionava: “Por que razão vamos escolher as armas do inimigo? Não faz qualquer sentido”.
A todos os movimentos que pretendiam derrubar ditaduras enviava a mesma mensagem: “As estradas da liberdade são sempre perigosas para as ditaduras”, daí que a melhor forma de as enfrentar era usando a cabeça e pensando cuidadosamente no que fazer em cada etapa. Porque, como escreve no livro, “Todas as formas de luta têm custos e complicações e o combate contra os ditadores fará certamente vítimas”.
Depoimento de Domingos da Cruz
A minha visão sobre a não-violência e a ação pacífica como categoria de transformação da realidade foi construída por outros autores com os quais privei na condição de leitor e acompanhante do percurso histórico destas personagens: Simone Weil, Jean Muller, Martin Luther King, Nelson Mandela e Mahatma Gandhi.
Mas nenhuma das personalidades anteriores causou tanto impacto como foi o caso de Sharp, pela sua capacidade de combinar teoria e prática não-violenta como instrumento chave para o desafio político resistente para saltar da opressão à uma sociedade aberta. O impacto de Sharp na minha vida académica e cívica só pode ser comparável a uma “revelação”. Esta foi a sensação quando li o seu primeiro livro em 2012 e continuei a estudar outras obras que são múltiplas, embora os leitores médios estejam focados na sua obra mais famosa: «Da ditadura á Democracia». Diante da sua morte, estou chocado. Mas o que me alivia é o facto de ele se ter imortalizado antes
de morrer.
Um dos detidos por tentativa de rebelião em Angola e autor do livro “Ferramentas para Destruir o Ditador e Evitar Nova Ditadura”