Durante quanto tempo há que repetir um gesto para se tornar num hábito? Quando se transforma uma moda num lugar-comum, daqueles bons, dos que nos trazem memórias? Estamos certos de que o sushi já saltou para a segunda fase na vida de tantos portugueses que, na hora de escolher o sítio para jantar, atiram um “vamos ao sushi” para o ar com tanta naturalidade como: vamos comer marisco à Ericeira, bifes à Portugália, tripas ao Porto ou percebes a Sagres.
Onde e quando começou o gosto nacional por esta variante da cozinha japonesa? Quem trouxe o sushi para terras lusas? E de onde vem essa relação de amor quase sem ódio por sabores, à partida, tão distintos do paladar português?
Foi nesta e noutras questões que Cristina Cordeiro, jornalista e investigadora, tropeçou quando começou a reunir informação para o livro “Arigato – 10 Anos de Sushi em Portugal”. E aqui abrimos parênteses – o livro que, tal como o nome promete, foi lançado a propósito da comemoração da década dos restaurantes Arigato, ex-Origami (Campo Pequeno e Parque das Nações). Mas, antes do Arigato, muitos tinham aberto cabeças e estimulado papilas para o gosto do Japão. Por isso, quando Cristina recebeu a proposta e se debruçou sobre estas questões, o trabalho final resultou numa competente e bonita edição – as fotografias são de Ricardo Oliveira Alves e o design ficou a cargo de Ivone Ralha – sobre o restaurante em si, o sushi em Portugal e sobre as relações luso-nipónicas.
Assim, esta celebração de dez anos do Arigato é também uma celebração do sushi nesta beira do Atlântico. A festa em forma de livro (bilingue) conta com receitas de nomes reconhecidos, como Justa Nobre e Paulo Morais; uma masterclass de Henrique Macedo – chefe e sócio do Arigato –, que dá várias dicas para a execução do sushi e explica quais as facas usadas e os vários tipos de corte; dois capítulos sobre a história do Arigato – um projeto “de sushi à portuguesa, na opinião de muitos” –; uma parte dedicada às origens do sushi e ainda a história dos pioneiros da restauração japonesa no país.
Comecemos, então, pelo princípio, um bom sítio para começar, já cantarolava Julie Andrews.
Pioneiros Estávamos em 1985 – ano em que Maria de Lourdes Pintasilgo se apresenta como a primeira mulher candidata à Presidência da República – quando abriu pela mão de Yoshio Chimoto, na Rua Filipe Folque, o primeiríssimo restaurante japonês no país. Chamava-se Kamikaze (Vento Divino) e não servia sushi. Esteve aberto durante dois anos e era frequentado por pessoas da RTP, que ainda funcionava na Cinco de Outubro, e por funcionários da embaixada do Japão. “Este restaurante, não cheguei a conhecer, mas conheci agora o sr. Chimoto, que fez receitas para o livro”, conta a autora, a quem Yoshio desfiou um rol de recordações. Nessa altura, por exemplo, tinha de viajar de comboio até Madrid para trazer os produtos para o restaurante.
Dois anos depois, em 1987, o Bonsai é inaugurado no Bairro Alto, na Rua da Rosa, pela mão do produtor de cinema Paulo Trancoso. Ainda hoje aberto, este é o restaurante japonês mais antigo do país, mas esteve para fechar logo dois anos depois, quando o cozinheiro Yamamoto anunciou o seu regresso ao Japão e substituí-lo se revelou tarefa complicada. A empreitada passa então para as mãos do casal Yokochi, “cuja empresa de importações e exportações era fornecedora da casa”, e manteve-se até hoje.
A juntar-se a estes dois pioneiros há ainda três projetos incontornáveis: o Furusato, que abriu em 1988; o Aya Sushi – uma das grandes escolas de cozinha japonesa em Lisboa –; e, em 1993, o Midori, na Quinta da Penha Longa, com o chefe Luís Baena, e que foi o primeiro restaurante japonês do país a introduzir a experiência de buffet.
Foi nestas referências, aliás, que se inspiraram João Banazol, arquiteto e professor universitário, e Pedro Fonseca, já ligado ao mundo da restauração, na hora de abrir o Arigato (que começou por se chamar Origami). E assim um restaurante pensado por portugueses assente em duas premissas: democratizar o sushi de qualidade e criar um projeto de inspiração japonesa em que os produtos portugueses ocupassem lugar de destaque.
A história do Arigato, desde a fundação até à expansão do modelo de negócio, é contada no livro – e é positivamente anómalo ver que os episódios menos felizes do negócio não foram censurados. Hoje, as cozinhas do Arigato são lideradas, como já referimos, por Henrique Macedo, chefe certificado pela AJSA (All Japan Sushi Association).
Quase 500 anos Mas se a relação do sushi com os portugueses começou há cerca de três décadas – e só na última ganhou a dimensão que hoje conhecemos –, os laços culturais e históricos entre Portugal e o Japão vão para 500 anos. Um diálogo que caminha para os cinco séculos também teve períodos de silêncio (ver cronologia).
Mas, apesar destes períodos, a arte, a língua e, sobretudo, a gastronomia são amplamente reveladores de uma prolífera e bilateral relação. E é este legado que, acredita Cristina Cordeiro, também se traduz na aceitação quase imediata pelo palato português destes sabores. “Foram os portugueses que levaram a tempura para o Japão”, recorda, aludindo aos missionários jesuítas, os responsáveis por levar a cultura ocidental a solo nipónico. “No período temporal antes da Páscoa não se podia comer carne e havia os peixinhos da horta. No fundo, o tempura são os peixinhos da horta, que podem ser feitos com tudo. Os vegetais ou peixe são envoltos num polme e faz-se uma fritura rápida.”
Dessa relação – retratada recentemente por Martin Scorsese no filme “Silêncio”, ficaram marcas na língua: arigato (obrigado), koppu (copo) e kirishitan (cristão) são alguns dos exemplos. E até na doçaria, como o kasutera, “o pão-de- -ló japonês, chamado bolo de castella porque nós, a dada altura, fomos dominados pelos Filipes e éramos todos castelhanos”, explica a autora.
Já o sushi que hoje conhecemos é uma criação japonesa do séc. xix, relata a investigadora. “Apareceu num mercado de rua, com um proprietário de uma banca em Edo a perceber que seria mais rápido se usasse as mãos para pressionar o arroz avinagrado, já usado há muito para conservar o peixe”, diz Cristina. Nasceu assim o niguiri sushi – que é, está visto, uma criação da street food que rapidamente se espalhou pelo mundo.
Em Portugal chegou mais tarde, e para o explicar temos de voltar às relações luso-nipónicas. Na ii Guerra Mundial, Portugal e Japão viram costas depois de este país invadir Timor.
“É muito curioso, porque foi através do desporto que os japoneses começaram a formar uma comunidade em Portugal”, explica a autora. Tal aconteceu em 1958, ano de viragem em que o governo português convida o nadador olímpico Shintaro Yokochi para formar e treinar uma equipa de nadadores de alta competição – nasce assim a equipa de natação do Sport Algés e Dafundo. O mestre radica-se em Portugal – a família permanece por cá – e, curiosamente, será Yokoshi a incentivar a abertura do primeiro restaurante japonês em Portugal.
Também em 1958 chega ao país Kiyoshi Kobayashi, mestre japonês de judo que será o principal impulsionador da Federação Portuguesa de Judo, fundada no ano seguinte.
E assim, através do desporto, estava lançada a semente. A aceitação pelos portugueses do sushi não foi, no entanto, imediata, diz Cristina. “Primeiro, os restaurantes eram elitistas do ponto de vista do preço. Depois havia a barreira de provar peixe cru puro e duro, que depois começou a ser ultrapassada.” E é aqui que a fusão veio aproximar paladares.
Fusão A conversa com Cristina Cordeiro já vai longa e ainda não chegámos à entrevista com o ex-embaixador do Japão em Portugal Hiroshi Azuma, uma entrevista feita para o livro que se desenrolou em dois atos e que talvez seja uma boa sinopse desta fusão entre os dois países.
“Para os japoneses, os laticínios eram um luxo porque não os consomem”, responde Cristina, quando lhe atiramos com a reclamação de muitos puristas relativamente à adição ocidental de queijos–creme ao sushi. E a fusão é tabu que as altas instâncias diplomáticas não sentem. “O senhor embaixador recebeu-nos com uma refeição estilo kaiseki, que é aquela refeição que deriva da cerimónia do chá dos rituais budistas, com pratos muito pequeninos. E pediu para o chefe fazer cozinha de fusão. Resultado: até porco preto havia na ementa! Foi muito engraçado, para vermos que não somos só nós, estrangeiros, que fazemos estas ‘maldades’”, conta. “Há uma delicadeza enorme nos japoneses, o não dito é quase mais importante do que o dito.” Curiosidade: um dos pratos portugueses preferidos do antigo embaixador, que deixou recentemente o cargo em Lisboa, era cabrito assado.
De um para todos Para Cristina, este foi um livro especial por duas razões: primeiro, começou por ser a encomenda da história de um restaurante e transformou-se num legado sobre o sushi no país. Por outro, a autora é fã há largos anos deste tipo de gastronomia – até já fez um workshop com o chefe Paulo Morais –, tanto que foi convidada a escrever o livro por João Banazol à mesa do Arigato, de que era cliente. E foi, aliás, Cristina a primeira jornalista a fazer uma reportagem sobre o Arigato aquando da abertura, há dez anos – já agora, na extinta revista “Cubo”, distribuída com o semanário “SOL”.
Cristina, tal como nós, acredita que o gosto pelo sushi veio para ficar. “É saudável, é bonito, é saboroso”, diz a sorrir, enquanto nos recorda que é do arroz que vem o sabor do sushi, e não do peixe.
No Arigato, os números falam por si e vão ao encontro do que começámos por apregoar: os portugueses gostam de sushi. E muito. Ora espreite a coluna ao lado: gastar 7,2 toneladas de salmão por ano e 129 mil pares de pauzinhos em dois restaurantes é obra. Ou é mesmo amor.