A antiga diretora do Departamento Central de Investigação e Ação Penal começou ontem a ser ouvida, pouco passava das 10h30, no caso Fizz. Perante o coletivo, Cândida Almeida assegurou que o arquivamento do caso em que Manuel Vicente estava a ser investigado pela compra de um apartamento no Estoril-Sol (processo 5/12) – investigação que estava a cargo do antigo procurador Orlando Figueira – está bem fundamentado, mas considerou irregular que tivessem sido extraídos dados relativos ao ex-governante angolano de um apenso do processo mãe (processo 246/11), ou seja, do processo em que se investigavam outras personalidades angolanas e da qual foi extraída a certidão que deu origem ao inquérito 5/12: “Está tecnicamente errado que se tenha determinado num processo que se retira documentos de um outro. Não vou num processo destruir uma coisa de outro, porque se não nesse outro destrói-se algo sem que haja despacho”. A estupefação da ex-diretora do DCIAP foi maior quando foi confrontada com o referido apenso, todo cheio de recortes: “Não há processos com buracos. Nunca vi”.
Ouvida na qualidade de testemunha no caso que está a abalar as relações entre Lisboa e Luanda, Cândida Almeida frisou ainda que a procuradora-adjunta de Orlando Figueira, Teresa Sanchez, não rubricou a última página do inquérito 5/12, na qual se determina a retirada das declarações de rendimentos entregues por Manuel Vicente (através do advogado Paulo Blanco). Cândida Almeida confessa que na altura não reparou nessa situação, e adiantou que sempre teve o entendimento de que apesar de permitida por lei a destruição não deveria acontecer.
As relações com Angola Ao início da manhã, Cândida Almeida lembrou que o ex-Procurador-Geral da República (PGR) Pinto Monteiro recebeu a determinada altura uma visita do até há poucos tempo PGR de Angola, João Maria de Sousa, tendo os mesmos firmado um protocolo de formação de magistrados angolanos que iriam ocupar um departamento idêntico ao DCIAP naquele país.
A ex-diretora do departamento que investiga a criminalidade mais complexa adiantou que tudo se desenrolou a partir de 2009. Cândida Almeida diz por isso ter pedido aos “procuradores Vítor Magalhães, Orlando Figueira e Lígia”, bem como a dois funcionários que ficassem responsáveis por essa formação.
“Arranjámos um espaço no DCIAP e os procuradores portugueses fizeram um programa que foi aprovado pelas Procuradores gerais dos dois países. Em Angola tínhamos uma procuradora de ligação, que se chamava Leonor, e em Portugal o doutor Orlando surgiu… sempre que havia alguma necessidade relacionada com Angola ele ajudava”, complementou.
Quanto a Paulo Blanco, Cândida Almeida disse que este “aparecia como elo de ligação para dar apoio aos magistrados e também com intervenção nos processos de Angola”.
Depois disso, a diretora do DCIAP foi a Angola numa visita oficial, em 2010, integrada na comitiva do PGR português, onde estava também a atual ministra da Justiça, Francisca Van Dunem. “Só fui a essa visita”, adiantou Cândida Almeida.
O desabafo que obrigou O PGR angolano a justificar-se Perante o coletivo, Cândida Almeida lembrou como um dia se irritou com a desistência de Angola de uma queixa que tinha sido feita e que estava a ser investigada – o chamado caso Banif.
A diretora do DCIAP disse ter desabafado que estavam “a utilizar a justiça portuguesa para resolver os seus problemas e depois deixavam a meio as investigações”. A lamentação terá chegado aos ouvidos de João Maria de Sousa sem que Cândida Almeida saiba como, o que levou o PGR angolano a justificar-se à posteriori: “Numa reunião o PGR angolano veio justificar a desistência, dizendo que respondia diretamente ao senhor Presidente da República. Eu até pedi desculpa…” Ao coletivo, presidido pelo juiz Alfredo Costa, disse também não ter sido comum reunir-se com o líder do MP angolano, ao contrário do que defende Orlando Figueira: “Não existiram muitas reuniões com o PGR de Angola, acho que esta foi a única”.
O dossiê de Orlando na viagem a Angola Cândida Almeida negou ontem que tenha pedido a Orlando Figueira para levar em 2011 para Angola um dossiê com o objetivo discutir com as autoridades daquele país casos que envolviam angolanos: “Eles iam para uma visita de comemoração [semana da legalidade] e não para reuniões oficiais. E mesmo que fosse para levar [um dossiê] seria o doutor Vítor Magalhães, que era mais velho, a fazê-lo e não o doutor Orlando Figueira”.
A antiga diretora do DCIAP esclareceu ainda o porquê de Figueira ter ficado com muitos dos casos de Angola: “Na altura o departamento debatia-se com falta de meios, os procuradores eram entre oito e dez e tínhamos de aproveitar as mais valias de cada um. O doutor Orlando tinha os crimes fiscais e para facilitar, porque eram sempre as mesmas queixas [vindas de Angola] acabou por ficar com esses. O doutor Vítor tinha mais o crime violento…”.
Reuniões antes dos arquivamentos Cândida Almeida admitiu que muitas vezes havia “uma conversa prévia aos arquivamentos [com os procuradores], até porque tinha de saber o que se passava”. E acrescentou que “muitas vezes os processos eram alterados por consenso”, mas que ficava na conversa definido o rumo. No processo em que Manuel Vicente estava a ser investigado pela compra de um apartamento no condomínio Estoril-Sol (processo 5/12) houve também trocas de impressões: “O doutor Orlando apareceu-me com um documento comprovativo dos rendimentos mensais que mostravam que Manuel Vicente poderia comprar dois ou três apartamentos…”
“Não conhecia o senhor engenheiro Manuel Vicente, não tinha ideia do nome, não tive especial cuidado. Só vim a saber mais tarde quem era, quando fui inquirida no DCIAP [no âmbito do caso Fizz]”, concluiu.
Cuidados de Cândida e elogios a Orlando A antiga diretora do DCIAP garantiu que quando Orlando Figueira lhe levou ao conhecimento os documentos comprovativos dos rendimentos de Vicente, bem como a intenção de arquivar o caso, já lhe tinha comunicado que ia sair: “Já lhe tinha pedido, nessa altura, para acelerar tudo, arquivar o que tinha de arquivar e acelerar o que tinha de acelerar, porque tínhamos poucas pessoas [procuradores]”.
“Era um bom magistrado, em termos técnicos, cumpria as datas, tinha bastante consideração pelo trabalho dele”, esclareceu, recordando que olhando para o arquivamento daquele caso, continua a ter a mesma posição que teve à época: “Achei a fundamentação suficiente. Não vi que outras diligências poderiam ser feitas. O senhor era angolano e estava em Angola. Em Portugal não havia registos [criminais], de Angola veio a declaração de rendimentos e ainda o registo criminal limpo”.
A procuradora que durante anos esteve à frente do DCIAP considera lógico o que foi feito: “Achei suficiente”.
“Como é que eu não vi isto?!” A testemunha disse em tribunal que por norma eram retirados do processo documentos para proteção dos dados pessoais, mas que os mesmos eram sempre guardados, ou deixados no “cofre” ou colocados num “envelope na contracapa dos processos rubricados e lacrados”.
“Essa era a prática e quanto à destruição, apesar de estar na lei, achava que não deveria ser feita”, esclareceu Cândida Almeida, dizendo que se se tivesse apercebido teria dito logo para suspender essa decisão para levá-la “a reunião de colegas”. Referindo-se à destruição de alguns documentos e ao facto de acompanhar os casos de arquivamento, Cândida Almeida atirou: “Esta foi a minha estupefação quando fui confrontada com este documento. Como é eu não vi isto?”
O dossiê extraviado do DCIAP Apesar de assegurar não ser comum o desaparecimento de documentação do DCIAP – recusando assim a justificação de Orlando Figueira de que deixar as declarações de Manuel Vicente no processo, mesmo que lacradas, era um risco, Cândida Almeida admitiu que houve um dossiê que desapareceu. Revelou que tinha todos os despachos no seu dossiê de acompanhamento no DCIAP, mas que o mesmo terá sido extraviado quando este mudou de instalações. A procuradora teve conhecimento desse facto porque tentou consultá-lo quando teve conhecimento dos factos no âmbito do caso Fizz.
“Tinha tudo num dossiê, mas parece que se terá extraviado com a mudança do DCIAP”, assegura, reforçando que lhe terá “escapado que [Orlando Figueira decidira que] documentos seriam destruídos”.
Ainda assim, chamou a atenção do coletivo que na página onde tal é determinado não consta a rubrica da procuradora adjunta de Orlando Figueira, Teresa Sanchez, dando a entender que aquela magistrada não teve conhecimento da destruição. E defendeu ainda mais a procuradora adjunta quando, contrariando a versão de Orlando, assegurou que Sanchez tinha uma autonomia reduzida.
Quando questionada sobre o porquê de a última página poder ter sido omitida à procuradora Teresa Sanchez, Cândida Almeida encolheu os ombros e disse: “Não posso dar a minha opinião”.
Justificação de Orlando A antiga procuradora do DCIAP esclareceu ainda que resolveu levar o processo 5/12 ao PGR Pinto Monteiro (algo que não era usual), porque nessa altura já se falava de uma saída do procurador para trabalhar com o Estado angolano ou com Álvaro Sobrinho: “Na altura falava-se no doutor Álvaro Sobrinho ou no Estado angolano. E eu perguntei-lhe isso, mas ele disse que não podia dizer para onde ia, apenas que não havia conflito de interesses”.
Cândida Almeida acrescentou que o magistrado lhe referiu ainda que se tratava de uma “empresa de consultoria e gestão”: “Disse que ia para funções de compliance para uma empresa internacional ligada a Portugal e América Latina”.
O dia em que desligou telefone na cara de Blanco A diretora do DCIAP disse não ter qualquer relação especial ou direta com Paulo Blanco, como o arguido havia sugerido, mas sim “uma relação de cortesia amistosa”
Lembrou ainda que a determinada altura Blanco lhe ligou e teve de desligar-lhe o telefone de forma brusca: “Pareceu-me pelo indicativo que estava em Angola e disse-me que lhe tinham dito que uma averiguação preventiva iria ser arquivada e que não foi, que tinha sido aberto inquérito pelo doutor Paulo Gonçalves. Não admiti que me falasse assim de processos”.
A mulher que entre 2011 e 2013 liderou o DCIAP confirmou que não havia grande controlo dos advogados, e portanto de Paulo Blanco, nas instalações da Rua Alexandre Herculano: “Era aberto e os advogados podiam procurar o magistrado e o funcionário com quem pretendiam falar”.
Relação com PGR angolano é estranha A testemunha disse ainda ter estranhado quando soube que algumas informações chegavam ao então PGR angolano por via não oficial sobre investigações em curso. Disse até que as relações com Angola eram boas, mas que tudo deveria ter seguido as vias oficiais: “Tudo deveria tramitar entre Procuradorias-gerais”.
Por mais de uma vez disse que “tinha uma grande estima pelo doutor Orlando”, referindo que “era simpático” e que “toda a gente gostava dele”. Disse também que foi uma surpresa “ter sido preso”.
“Na altura [antes de Orlando sair] disse-lhe para ele continuar no MP, sim ganhávamos mal, mas tínhamos a nossa ética”, assegurou, continuando: “Ele disse que não podia porque lhe iam avançar um ano de salários o que lhe dava jeito por estar em processo de divórcio e ter um filho a estudar” nos EUA.
Mas se de Orlando “tinha uma boa opinião e uma boa ideia”, já de Blanco, Cândida Almeida foi clara: “Nada contra nem a favor, era uma relação profissional”.