Canábis para fins medicinais e o resto?

NOS PROJETOS 1. Já em abril de 2015, o BE apresentara um Projeto na Assembleia da República pretendendo legalizar o cultivo de canábis para consumo pessoal.  Legalizar significa adquirir, deter e consumir uma droga com restrições mínimas, mesmo que considerada proibida pelas Nações Unidas. Para além da legalização do cultivo e consumo da planta, substâncias…

NOS PROJETOS

1. Já em abril de 2015, o BE apresentara um Projeto na Assembleia da República pretendendo legalizar o cultivo de canábis para consumo pessoal. 

Legalizar significa adquirir, deter e consumir uma droga com restrições mínimas, mesmo que considerada proibida pelas Nações Unidas. Para além da legalização do cultivo e consumo da planta, substâncias e preparações de canábis, obviamente sem prescrição médica, visava-se a aquisição da mesma em quantidades reportadas ao consumo médio individual para um período de 30 dias ou o cultivo para consumo pessoal até 10 unidades de plantas. Mais do que isso, queria-se a possibilidade de criação de ‘clubes sociais de canábis’, ditos para estudo e investigação, assim como para cultivo e cedência de plantas, substâncias ou preparações aos associados, com controlo de qualidade assegurado pelo INFARMED. Curiosa e hipocritamente, naqueles clubes sociais de canábis seria interdito o consumo e a venda de bebidas alcoólicas. 

Também nessa altura se desejava proporcionar canábis aos doentes que dela necessitassem para uso terapêutico.  
Foi rejeitado tal projeto, com votos contra da maioria de então – Governo Passos Coelho -, do PCP, e a abstenção dos Verdes e do PS, com exceção de algumas figuras conhecidas deste Partido que votaram a favor. 
Volta à carga o BE, agora acompanhado do PAN, em mais soft mistificação.
O que se pretende? Abandonaram os ‘clubes sociais’, a droga é para fins medicinais, pois a evidência científica há muito atestaria que a canábis tem efeitos benéficos para tratamento da dor, diminuição da náusea e vómitos associados à quimioterapia e estimulação do apetite.
Especificando: haveria licença de cultivo para consumo próprio de plantas, receitas médicas para plantas, a aviar nas farmácias, e quantidades semelhantes ao que hoje pode circular. 
O projeto baixou à Comissão de Saúde a pedido do BE, em 11.01.2018, sem votação, por 60 dias.

AS CONVENÇÕES INTERNACIONAIS

2. É sabido que existe um mecanismo de controlo das substâncias estupefacientes, psicotrópicas e precursores, a nível mundial, através da ratificação de três convenções, de 1961, 1971 e 1988, o que foi feito praticamente pela totalidade dos países.

Tal mecanismo visa a proteção da saúde física e moral da humanidade (assim fala a Convenção de 1961), devendo as drogas, classificadas em tabelas permanentemente atualizadas, ser usadas apenas para fins médicos e de investigação científica. 

Um instrumento internacional vale tanto mais quanto a sua adesão se aproximar do universal e a interpretação e aplicação das regras em cada país não tiver flutuações ou brechas sensíveis de outros países.

O sistema tem órgãos próprios de atualização das drogas, de controlo e de natureza científica. Assim, a Comissão de Estupefacientes pode designar-se de Órgão Administrativo, o Órgão Internacional de Controlo de Estupefacientes, é o elemento de fiscalização e a Organização Mundial de Saúde o pilar científico, que funciona na catalogação das substâncias que devem ser incluídas nas tabelas. 

Não se mostra difícil a alteração das tabelas ou listas de drogas (ou precursores), mas tal não é feito sem estudos idóneos e com o parecer final da OMS.

A meu ver, existem, porém, alguns obstáculos de vulto ao bom funcionamento do sistema.

Desde logo, a diversidades de legislações e as suas particularidades, apesar da matriz comum, refletindo a diversidade de culturas e tradições de países ou regiões. Por exemplo, isso levou a que na altura da entrada em vigor da Convenção de 1961 fossem admitidas reservas para o uso de ópio para fumar, para a mastigação da folha da coca, e também para o uso da canábis, da resina, extratos e tinturas de canábis com fins não médicos, as quais deveriam cessar em prazo nunca superior a 25 anos.

Curioso é o que se passou com a Bolívia, confrontada com uma arreigada tradição da mastigação da folha de coca e que as convenções obrigavam a proibir decorrido aquele período. Apertada entre as convenções e a sua Constituição, que considerava aquele hábito como fazendo parte da sua tradição e património cultural, religioso e de interesse médico, denunciou a Convenção Única e só voltou a aderir, em janeiro de 2013, com a reserva do ‘acullico’, ou seja, da mastigação da folha da coca, usada entre os camponeses para recuperar as forças perdidas pela altitude e trabalho duro do dia-a-dia, fome e indigestão.

Em segundo lugar, a evolução do conhecimento, como o seu acesso, nomeadamente através das novas tecnologias da informação, é muito díspar entre países e continentes, pelo que as necessidades e hábitos das populações são diferentes.

Em terceiro lugar, se aquela universalidade das convenções apresenta vantagens, também no reverso exibe vários inconvenientes, o menor dos quais não deixa de ser a dificuldade na modificação do sistema e por isso a rigidez dos textos e o desconforto sistemático de que certos países se fazem eco nas reuniões e que geralmente… não tem eco em consequências práticas nem em países de culturas e sistemas políticos diferentes.

Sendo quase consensual que na problemática das drogas o vetor da saúde é o mais importante, e sendo certo que as Nações Unidas beneficiam dos trabalhos da OMS, interrogamo-nos da razão de não haver experiências sobre políticas avançadas, em um ou mais países, sob controlo dos órgãos especializados das NU, e se deixa esses ensaios ou estratégias entregues a cada país. Por algumas das razões referidas, essas experiências diferentes, para além de serem suportadas apenas por países isoladamente, acabam ao longo dos anos por ser objeto de críticas variadas, nem sempre as ajustadas e objetivas (lembre-se o caso dos Países Baixos).

E de algum modo também a estratégia portuguesa a partir de 2000, com a descriminalização: enquanto as instituições nacionais à viva força entendem que foi encontrado o remédio do sétimo céu, algumas avaliações são francamente infundadas e, em nossa opinião, países com outras políticas menos permissivas, como a Bélgica, a Áustria o Reino Unido, para não aludir à Suécia, ostentam resultados comparativamente idênticos, como antes da implementação de tal estratégia e se vê dos relatórios de organizações regionais e internacionais. Sem dúvida que Portugal passou a dedicar mais recursos sanitários ao tratamento de toxicodependentes, mas fica-se sem saber o que ocorreria se os mesmos recursos tivessem sido alocados a uma política de mais responsabilidade social dos consumidores de droga, parecendo-nos que as Comissões de Dissuasão da Toxicodependência, ao fim destes mais de 15 anos, são uma experiência falhada. 

Para não repetir a aberrante situação de se continuar a deixar em vigor a legislação de 1993, quanto ao tráfico de droga e outras matérias – e mais, com o STJ a entender, no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 8/1008, de 25 de Junho de 2008, que constitui infração criminal e não contraordenação, a aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias. 

Impõe-se, há muito, uma avaliação absolutamente independente desta alteração estratégica, as alterações legislativas necessárias para acabar com esta ‘manta de retalhos’, assim como terminar com a visão praticamente exclusiva da ‘Saúde’ perante um fenómeno que todos admitem como pluridisciplinar.

OBSERVAÇÕES

3. Algumas observações sobre aqueles projetos.

3.1. O aproveitamento de uma qualquer droga das incluídas nas tabelas das NU para fins medicinais não oferece qualquer reserva, pelo contrário, pois é frequente ver aqueles organismos internacionais a apelar aos países mais desenvolvidos ou mais ricos que auxiliem a fornecer substâncias estupefacientes para alívio da dor, como é o caso da morfina e de medicamentos com substâncias psicotrópicas, a países mais desfavorecidos.

O que sucede é que, em termos científicos, os estudos e ensaios quer da canábis sativa, quer de outros canabinóides, não oferecem ainda suficiente segurança para serem aprovados como medicamentos. Mas se as instituições próprias, a OMS e entre nós a Ordem dos Médicos, e mais propriamente o INFARMED assim o entenderem, qual o obstáculo? Crê-se que a Ordem dos Médicos, tal como o Partido Comunista, o mentor da Resolução da Assembleia da República n.º 33/2018, de 2018-02-02, excelentemente fundamentada, apontam no caminho certo – o estudo científico das vantagens clínicas da utilização da canábis sativa ou outras para fins terapêuticos, em certos casos, tendo também em consideração evoluções registadas noutros países, e a posterior tomada de decisão.

Isto, porém, nada tem a ver com estes dois projetos, onde se advoga o auto cultivo para consumo próprio, a prescrição de plantas para aviar na farmácia e depois fumar.

O controlo que as convenções impõem não seria minimamente observado e o tombar na liberalização da canábis para fins recreativos estaria à vista.

3.2. Na já aludida Resolução desencadeada pelo Partido Comunista, salientam-se alguns aspetos que, de momento, aparecem como dados adquiridos: aos derivados da canábis não são conhecidas propriedades curativas de doenças mas principalmente de alívio de dor em algumas; em muitas publicações nacionais e internacionais são apontados efeitos adversos decorrentes do seu uso, especialmente para os jovens adultos, com o aumento da frequência do consumo.

Há muito se alude, acrescentaremos, à desmotivação provocada pela canábis no aproveitamento escolar.  
Mas o que não deixa de ser significativo é o alerta último (2017) para o crescimento que se verifica no consumo de canábis, proveniente do próprio SICAD, o organismo nacional coordenador da luta contra a droga, afirmando que quadruplicou.

Clama-se então de novo pela reorganização das estruturas, quando o que, a nosso ver, se justifica é o afeiçoamento de toda a estratégia e depois sim o balanceamento da organização, retirando-a em parte dos mesmos atores.
Os primeiros relatórios e avaliações dão conta das experiências de liberalização da canábis, especialmente em alguns estados dos EUA: a partir de 2008, e paralelamente à adoção de medidas para permitir o uso medicinal da droga – o que foi feito com critérios menos rigorosos do que nos outros produtos farmacêuticos -, aumentou o consumo recreativo, sob a perceção de menos riscos e danos; deu-se uma ampliação do consumo em todo o território dos EUA, de maneira desproporcionada nos adultos de baixo nível socioeconómico (os grandes consumidores habituais), especialmente a população maior de 25 anos; há reflexos na indústria da oferta, na publicidade e marketing (apesar de em teoria, proibidos), nos ganhos fiscais, que já ultrapassarão os do tabaco nos estados de Washington e do Colorado. 

Não creio que seja este o caminho que Portugal quer percorrer.

Curriculum Vitae
Presidiu aos Grupos de Trabalho que prepararam as reformas da legislação de combate à droga de 1983 e de 1993.
Presidiu ao Grupo de Trabalho que preparou o diploma sobre branqueamento de capitais (1995).
Preparou os diplomas de combate à droga vigentes no Território de Macau.
Membro do Órgão Internacional de Controlo de Estupefacientes, eleito pelo Conselho Económico e Social das Nações Unidas para um mandato de 5 anos, que teve início em Março de 1995, sendo seu Presidente em 1999/2000.
Membro da Comissão para a Estratégia Nacional de Combate à Droga (Fevereiro de 1998).
Vários escritos sobre droga.
Juiz-Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça Jubilado.