As negociações para o retomar de relações diplomáticas entre o Vaticano e a República Popular da China ameaçam dividir a Igreja Católica. Esse retomar de relações diplomáticas só será concretizado se a Igreja e o regime comunista fecharem um acordo sobre a nomeação de bispos chineses, visto que, até à data, o desacordo em torno desta matéria faz com que haja duas igrejas distintas na China: a católica, na clandestinidade, e a autoproclamada igreja “patriótica”, com os bispos escolhidos pelo Partido Comunista Chinês.
Nas últimas semanas, os católicos chineses têm vindo a olhar com substancial apreensão para a possibilidade de a nomeação dos bispos na China passar, com o mencionado acordo, a ser uma responsabilidade partilhada entre Roma e Pequim. E se os bispos nomeados pelo regime chinês forem reconhecidos pelo Vaticano será aberto um precedente que desprotege aqueles bispos que, durante décadas, foram forçados a viver na clandestinidade.
Joseph Zen, o antigo cardeal de de Hong Kong, acusou mesmo o secretário de Estado do Papa Francisco – o cardeal Pietro Parolin – de dizer “disparates”, depois do responsável pela política externa da Igreja Católica ter apelado a um “consenso” entre as duas partes. Zen, de 86 anos, que viveu grande parte da sua vida enquanto sacerdote sob ameaça do regime, acusa agora a Igreja de “querer vender” os católicos perseguidos na China “aos comunistas”.
Mas a troca de galhardetes não se ficou entre barretes rubros. O arcebispo Marcelo Sánchez Sorondo, responsável máximo pela Academia Pontifícia de Estudos Sociais, foi criticado pelo padre Bernardo Cervellera depois de elogiar a capacidade chinesa de implementar a doutrina social da Igreja. Para Cervellera, que dirige também uma agência de notícias asiática, o arcebispo vive “no país das maravilhas”. Em editorial, escreveu: “Podemos entender a vontade de estabelecer relações entre a China e o Vaticano e de exaltar a cultura chinesa, mas adular a China é uma afirmação ideológica que faz da Igreja alvo de piadas…”.
Uma carta ao Papa Nesse sentido, esta segunda-feira, um grupo de católicos chineses enviou uma carta aberta ao Vaticano, manifestando a sua preocupação com a concretização do entendimento referido. Em relação a esse acordo “que estará para breve sobre a nomeação de bispos, reconhecendo sete bispos ilícitos [isto é: nomeados pelo Partido Comunista Chinês]”, os 1016 fiéis que subscrevem a missiva falam de um “profundo choque e desapontamento”.
“A perseguição de cristãos é hoje pior do que nos últimos cinco séculos de Igreja e há hoje mais mártires do que antes”, contextualiza a missiva. “Nós acreditamos que Sua Santidade [o Papa Francisco] também fica magoado pela perseguição dos cristãos na China. E é por isso que pedimos que quaisquer acordos [entre a Igreja e a China] sejam fundados na liberdade religiosa e na procura do fim da perseguição religiosa. Infelizmente, a recentemente revista Regulação sobre Assuntos Religiosos [do regime chinês], que permite o aumento do escrutínio sobre as religiões, entrou em vigor no início de fevereiro, logo não vemos qualquer possibilidade de este novo acordo resultar no fim da perseguição do governo chinês à Igreja [Católica]”, remata a carta.
No congresso do Partido Comunista Chinês, em outubro passado, Xi Jinping, presidente chinês e atual secretário-geral do partido único, reafirmou a necessidade da religião ter “uma orientação” do regime.
Padres presos O sacerdote português Gonçalo Portocarrero de Almada escreveu a semana passada acerca da controvérsia, num artigo de opinião publicado no jornal digital Observador.
“Na China comunista, a Igreja Católica é perseguida, principalmente os seus bispos e padres. Muitos, com efeito, estão detidos, ou impedidos de exercerem o seu ministério. Como já acontecera com a Revolução Francesa, as autoridades comunistas chinesas promoveram uma igreja católica cismática, que recebe o nome de patriótica, por oposição à verdadeira Igreja, que seria portanto antipatriótica. Escusado será dizer que só os bispos e padres da igreja patriótica têm liberdade de ação; a Igreja clandestina não goza de quaisquer direitos e os seus bispos e padres só podem exercer o seu sagrado ministério de forma oculta e com perigo da própria vida”, descreve, recordando que o anterior Papa, “Bento XVI, tentou que as nomeações dos bispos católicos na China fossem feitas por acordo entre a Santa Sé e as autoridades chinesas, por forma a pôr termo à existência das duas hierarquias paralelas”, no entanto, no pontificado atual, de Francisco, “a diplomacia vaticana parece estar a tentar uma nova solução, mas pela via da substituição dos bispos clandestinos pelos da chamada igreja patriótica”.
As trocas de acusações antes citadas terão, aí, um catalisador.