A vida dá voltas e nem sempre as relações funcionam, por motivos diversos. Foi o que aconteceu a Carlota. Casou-se pela Igreja e teve dois filhos dessa relação, que durou cinco anos. Entretanto, o casamento chegou ao fim.
Conheceu, depois, João. Corria o ano de 1996 e apaixonaram-se. “Sabíamos que não ia ser um namoro fácil, uma vez que a Carlota era divorciada e já tinha dois filhos”, recorda João, hoje com 56 anos. Mas decidiram dar o passo e, em 1997, Carlota submeteu o processo para pedir a nulidade do primeiro casamento. Não é uma decisão que se tome de ânimo leve e requer bastante reflexão. “Foi um processo muito demorado e fui chamada várias vezes”, conta Carlota, de 55 anos. Hoje, o processo é menos demorado devido às alterações introduzidas pelo Papa Francisco – na carta apostólica “Mitis ludex Dominus Iesus”, publicada em 2015 –, para agilizar o sistema.
Do lado de João, a decisão também foi pensada. “Aconselhei-me com o meu conselheiro espiritual e fizemos várias reuniões para eu saber as consequências da minha opção.” Foi então que decidiram avançar com o casamento pelo civil, em 1998. Pouco tempo depois surgiria uma proposta que fez todo o sentido para o casal recém-casado, que ainda não sabia bem qual seria o seu lugar na Igreja.
Uma ajuda com quase três décadas “O meu conselheiro espiritual, conhecendo-me bem a mim e à minha mulher, soube de uma Equipa de Santa Isabel que o padre Carlos Paes estava a guiar e aconselhou-nos a ir a uma reunião”, lembra João. Foram e gostaram. “No fundo, as reuniões ajudavam-nos a estar ainda mais dentro da Igreja, como nós queríamos.”
Criadas em 1989 pelo padre Carlos Paes, as Equipas de Santa Isabel integram casais que estão irregulares perante a Igreja – católicos que, tendo celebrado um primeiro matrimónio pela Igreja, recasaram pelo civil sem que a primeira união tivesse sido declarada nula, precisamente os visados na nota pastoral de D. Manuel Clemente. O modelo assemelha-se às Equipas de Nossa Senhora – grupos de casais unidos pelo matrimónio, sem qualquer “irregularidade” – e consiste numa reunião mensal, em casa de um dos casais, com a presença de um padre, no papel de conselheiro espiritual.
Um lugar em comum A reunião é um momento de reflexão em que se partilham experiências e “pontos concretos de esforço”, faz-se o estudo de um tema e fala-se sobre as dificuldades. “Tínhamos uma coisa em comum, e essa partilha era importante e dava-nos força uns aos outros”, explica João.
O padre Carlos Paes, que ainda hoje continua a acompanhar as equipas, recorda como surgiram. “Tenho várias equipas, e numa delas havia um casal que me falava de uma filha que tinha casado com um rapaz já casado e, portanto, sabia que não podia pertencer [à Igreja], e tinha muita pena. E eu disse-lhe ‘olhe, diga à sua filha que, se ela arranjar outros casais que estejam na mesma situação, eu não me importo de fazer um grupo com todos’”. E assim foi.
Quase 30 anos depois, o pároco, hoje com 79, acredita que continuam a fazer sentido. “São uma iniciativa para fazer uma coisa de que já o Papa João Paulo ii falava: a necessidade de prestar a estas pessoas um acompanhamento porque, psicologicamente, quem está nesta situação tem um sentimento de que está excomungado porque não pode aceder aos sacramentos todos, não pode participar em tudo… Ora bem, o Papa diz que – e é isso que eu digo às pessoas – não estão excomungadas nem estão castigadas”, explica Carlos Paes. “Vivem, sim, de uma outra forma porque há essa situação. É comum as pessoas que entram terem este sentimento e o que eu lhes digo é que não é assim. Também há um caminho para elas e é isso que procuramos fazer.”
Entretanto, o processo de nulidade do primeiro casamento de Carlota só viu o final em 2004. O casal pôde, então, avançar com o casamento pela Igreja. Nessa altura, João e Carlota deixaram de frequentar o grupo. Depois, começaram a frequentar as Equipas de Nossa Senhora. E hoje, têm dois filhos, além dos filhos do primeiro casamento de Carlota.
E a continência? Enquanto frequentaram as Equipas de Santa Isabel, João e Carlota nunca se sentiram postos de parte ou olhados de lado. “Sempre senti a Igreja aberta, a Igreja, a mim, nunca me fechou as portas, tanto na vida paroquial como na vida fora da paróquia, com o meu conselheiro espiritual. Sempre senti que havia espaço para a compreensão da especificidade”, diz João.
Carlota tem a mesma experiência. “A nota de D. Manuel Clemente revela que há cada vez mais abertura. A verdade é que há cada vez mais divórcios e cada vez mais casais recasados. Nunca nos sentimos ostracizados, sempre tivemos acolhimento.”
A polémica em torno das palavras de D. Manuel Clemente é exagerada, aos olhos de ambos. “Achei que essa frase estava ali a mais, sinceramente”, confessa João. “Mas mais importante do que isso é o facto de que aquela frase não pode desvalorizar tudo o resto que está lá escrito.” João assinala a abertura do Papa Francisco, que está presente na nota de D. Manuel Clemente, sob a forma de várias opções. “É um bocadinho esquisito para um casal como nós perceber aquela frase. Eu olho para a minha mulher e questiono-me como é que se pode aconselhar abstinência a um casal que se quer casar…”.
Quando João e Carlota estavam “irregulares” aos olhos da Igreja, nunca a questão da continência esteve em cima da mesa. “Nunca foi uma hipótese, o padre nunca a referiu. Isso, de facto, é uma proposta um bocadinho estranha para um casal que se ama, no meu entendimento. Acredito que aconteça com algumas pessoas que estejam dispostas a isso, mas connosco, não”, diz João.
O padre Carlos Paes acrescenta uma outra perspetiva. “Não são palavras novas. As pessoas não leram a nota toda, porque, naquele contexto, a nota ajuda a perceber qual é a preocupação do senhor Patriarca. Quando a Igreja nos pede uma renúncia, é sempre em nome de uma preferência, de um amor maior, de um contexto maior que se quer salvaguardar, e não é apenas a renúncia pela renúncia. É a renúncia em nome de valores”, defende.
Aliás, a questão da continência é, assinala, uma realidade com que muitas pessoas se deparam, e não só aquelas que estão irregulares perante a Igreja. “Uma pessoa que é casada e o cônjuge vai trabalhar para fora, para o estrangeiro, fazer uma temporada. Então e agora? Também estão privados das relações. Mas é por uma boa causa e compreendem e aceitam porque depois terão oportunidade de retomar aquilo que é normal”, aponta.
No seio da Igreja, nem sempre esse é um cenário para os casais “recasados”, assegura o padre. “Nem sempre é assim. Nessas circunstâncias, vamos estudar o caso e ver como é que pode ser integrado e vivido. Não são posições fechadas nem tabu, há sempre uma ponderação. Mas a sexualidade não é tudo, não é? A ternura está presente na mesma, não devemos afunilar só nas relações sexuais.”
Amadurecer a relação é o essencial, defende. “Às vezes, quando os casais partem para a sexualidade, o relacionamento interpessoal não está aprofundado o suficiente para poderem construir toda uma história de uma aliança que é crescente e que não depende só disso. Por isso, essa privação, se for por razões positivas, não vai ser sentida como uma desgraça ou como uma privação simplesmente, porque há oportunidade para viver outras dimensões da vida afetivo–sexual”, acredita. “Podia dizer-se dessas pessoas aquilo que se pode dizer de certas comunidades religiosas, não é? Juntam-se sem se conhecerem, vivem sem se amarem e morrem sem chorarem. Este é o drama dos casais – conhecem-se mal e juntam-se, vão logo a correr para a cama, como fazem muitos adolescentes que só pensam naquilo. A intimidade e as relações sexuais são quase como uma celebração, deve estar criado um contexto”, conclui.