Se nos Estados Unidos as armas de fogo fossem proibidas com tanta veemência como as pistolas de brincar são no nosso país, desgraças como a que aconteceu na Florida na passada quarta-feira – não por acaso no dia dos namorados – possivelmente não aconteceriam.
A seguir a massacres como este várias vozes condenam as armas de brincar, como se fossem elas as causadoras do sofrimento e revolta não pensadas de algumas crianças e jovens, que acabam, por isso mesmo e graças à facilidade em adquirir armas naquele estado, a canalizar a sua agressividade de forma dantesca a inocentes.
Conheço várias pessoas que não permitem que os filhos tenham ou brinquem com pistolas de plástico. Certo dia ouvi em conversa alguém próximo dizer: ‘O meu filho de seis anos não sabe o que são pistolas de brincar e pelo que depender de mim, nunca irá saber’. Da mesma forma, um amigo quase me chamou assassina quando num Natal soube que eu tinha dado ao meu filho uma pistola do Slugterra que dispara umas lesmas. Na pré-primária outro filho foi proibido de levar uma espécie de pistola que deitava bolas de sabão porque… tinha forma de pistola. De que tem medo este pensamento tão limitado e limitativo? Que as crianças se tornem terroristas quando crescerem? Que se afeiçoem de tal forma às pistolas que daqui a uns anos queiram ter uma a sério? Que se tornem más? Que magoem alguém com a pistola de brincar?
Aqui é que está a questão. As pistolas de brincar não magoam ninguém, são mais inofensivas do que bonecos pesados que se tornam projeteis, lápis afiados ou brinquedos demasiado barulhentos. Além do pum pum que as crianças fazem com a pistola de brincar, com os legos que criam em forma de pistola ou com os próprios dedos, ninguém dá por elas, mas em contrapartida para quem as usa têm um papel valioso. Quem as tem sente-se poderoso, pode lidar com a agressividade brincando, experimentando. Ao brincar aprende a geri-la e descobri-la, a dirigi-la a quem apetecer na altura, tudo sem prejudicar ninguém, sem magoar, porque é a brincar, está-se no registo do faz-de-conta.
Um professor da faculdade disse uma vez a propósito dos brinquedos que uma Caixa de Ludo (caixa de brinquedos usada em psicoterapia de crianças) deve conter: ‘Uma boa pistola é meia psicoterapia feita’. Enquanto se puder trabalhar a agressividade com pistolas de brincar, estamos também a pensá-la, a admiti-la em nós, a elaborá-la, a arrumá-la, a geri-la, sem nos pormos em perigo ou aos outros. E embora alguns pais não queiram ver, a agressividade, a zanga, existe em todas as crianças, em maior ou menor grau. Não surge por terem uma pistola na mão e também não é por não a querermos ver que deixa de existir. A agressividade, a zanga e as pulsões mais destrutivas fazem parte de todos, das crianças aos adultos, e são saudáveis se fizerem parte de nós de uma forma natural. Pelo contrário, se forem ignoradas – como parece ter acontecido a este jovem que cometeu o maior erro da sua vida – fica reprimida e vai crescendo, até que um dia saia de forma abrupta e sem aviso. Mas aí já não é só a brincar.
Psicóloga clínica