A chanceler alemã navegou os últimos meses na contramaré europeia. Contrariou as correntes que esburacaram o navio britânico, abalaram com intensidade a embarcação francesa, semearam o caos no leste e, na casa alemã, levaram os nacionalistas de novo ao Bundestag, o partido de Angela Merkel aos piores resultados do pós-guerra e quase provocaram uma crise política que, na realidade, ainda não está ultrapassada por completo.
Merkel navegou pela tempestade sem abdicar do rumo europeu e esta quinta-feira, num momento em que a maré parece estar finalmente a mudar a seu favor, mas ainda sem governo fechado ou assegurado, a chanceler desfraldou as velas num discurso europeísta: quer mais Europa, premiar o acolhimento de refugiados, criar um ordenado mínimo europeu e que a comunidade compense a fuga britânica contribuindo mais.
Merkel, em suma, quer aproveitar a saída do Reino Unido para reformar e reinventar a comunidade. Esse será, assegurou esta quinta, um dos objetivos centrais do novo governo com os sociais-democratas. Dizê-lo não é uma banalidade. Merkel discursou tendo em frente, na terceira bancada mais numerosa do Bundestag, a consequência mais grave da sua política europeia e de acolhimento em massa de refugiados, sob a forma da Alternativa para a Alemanha (AfD), a primeira formação nacionalista da extrema-direita a entrar no parlamento desde o fim da guerra.
“Estou convencida de que o mundo não vai esperar por nós, nem pela Alemanha nem pela União Europeia. Necessitamos, mais do que nunca, de respostas europeias para as questões urgentes do nosso tempo”, afirmou a chanceler, citada pela Lusa, na véspera da cimeira europeia informal de hoje, onde os 27 Estados-membros discutirão o futuro da comunidade no pós–Brexit.
E para esse novo período, Merkel deseja uma reforma da lógica de distribuição dos fundos: em vez de apoiar acima de tudo as obras públicas nos países mais pobres, Bruxelas deve distribuir fundos pelos países que mais obedecem aos valores europeus da solidariedade, medindo, por exemplo, o acolhimento de refugiados e migrantes.
A ideia de que a Alemanha e os outros 26 membros devem pagar mais para compensar o buraco que o Reino Unido deixará no orçamento não é do agrado de todos os países e será hoje um tema quente de debate em Bruxelas. Dizê-lo há alguns meses em Berlim seria também o equivalente a dar um tiro eleitoral no pé .
Hoje, não se passa o mesmo. Uma sondagem publicada esta quinta no “Frankfurter Allgemeine” revelou um aumento no sentimento europeísta alemão, sustentando que 51% da população acredita numa integração mais acelerada entre os países da UE e que 49% o encara favoravelmente. Apenas 36% quer o contrário: que Bruxelas devolva poderes a Berlim.
A nova realidade alemã, no entanto, faz-se ouvir. A AfD, na qualidade de provável principal partido da oposição, reagiu primeiro ao discurso de Merkel. Alice Weidel, colíder dos nacionalistas, adotou a postura inversa da chanceler, acusou-a de agravar um “aparelho europeu obeso” com “défices gigantes” e composto por “burocratas”.
“Tudo o que faz é gastar o dinheiro das outras pessoas”, lançou Weidel a Merkel, antes de se ver atingida um pouco de todos os lados. Reduzir o apoio à Europa é introduzir a Alemanha no “mesmo caos do Reino Unido”, disse-lhe o líder dos liberais; e querer uma “Europa de nações fortes”, como desejam a AfD e a Frente Nacional francesa, é “questionar” os valores “da democracia e da unidade”, como lhe atirou a líder dos Verdes.