Escreveu o livro quando ainda estava preso no Forte de Peniche. Para isso concorreu o facto de ter lido de uma forma apaixonada e aprofundada a Crónica de D. João I de Fernão Lopes. «Como na cadeia só podia receber um livro de cada vez, tive muito tempo para ler A Crónica de D. João I e de fazer muitas anotações», diz-nos numa entrevista que vai sair proximamente no i. Preso com Álvaro Cunhal, pôde ler o manuscrito que o líder do PCP tinha escrito na Penitenciária de Lisboa, que só foi editado em Portugal em 1975, As Lutas de Classes em Portugal nos Fins da Idade Média, em que é descrita a Revolução de 1383.
Foi em grande parte essa vontade de escrever e estudar história que o levou a não integrar a célebre fuga de Peniche, em que fugiram 10 dirigentes do PCP, e decidir sair da clandestinidade. Isso custou-lhe mais dois anos de cadeia, muito duros devido à retaliação e revanchismo dos carcereiros e alguma incompreensão dos seus camaradas. Mesmo a escrita não foi fácil. O primeiro livro, que publicou, sobres os Descobrimentos, levou a PIDE a ameaçar tirar-lhe a liberdade condicional. Quando saiu A Revolução de 1383, foi convocado à sede da polícia política na rua António Maria Cardoso. Lá chegado, fecharam-no numa sala sem janelas durante seis horas, e depois, sem mais, libertaram-no.
A História escrita de Borges Coelho faz-se sobre gente que a historiografia oficial deixou propositadamente invisível. Esta redenção dos esquecidos é um objetivo da sua escrita magnífica. Não é por acaso que ele se preocupa, noutros livros, em resgatar a parte árabe da nossa História. Os árabes dominaram a Península Ibérica durante cerca de 500 anos, e nos livros de História era como se nunca tivessem existido.
É verdade que para este exercício de resgate Borges Coelho conta com alguns aliados de peso. Quando escreve 1383, tem como iluminação as páginas do cronista Fernão Lopes, que numa época em que só existiam reis e senhores, percebia, pelos tempos conturbados em que viveu, com a mais nítida das perceções a importância dos homens e mulheres mais humildes no vencer as batalhas e no traçar da História.
«Quem construiu Tebas, a das sete portas?/Nos livros vem o nome dos reis,/Mas foram os reis que transportaram as pedras?» A arraia miúda já tinha, como assinala esta passagem do poema de Bertol Brecht, feito muito, mas tinha-o feito no silêncio e na escuridão cimentada pelo corte dos hagiógrafos. Fernão Lopes veio, como nenhum no tempo dele, rasgar esse silenciamento.
Vejamos uma passagem de Borges Coelho sobre a primeira revolução burguesa a nível nacional, quando povo e burguesia se opuseram ao domínio de Castela e apoiaram o Mestre de Avis, embora com vontades diversas: «Os povos miúdos suportavam uma dupla opressão: a da nobreza, que os ferreava com a servidão, os foros, os dízimos, as alcavalas, as masmorras e o cepo; e a da burguesia, que os forçava a trabalhar por salários baixos e tabelados. Assim derrotados o poder senhorial em Évora, o povo desdenhou os capitães burgueses da primeira hora e estes tiveram de acolher-se junto do Mestre. Os novos capitães são agora cabreiros e alfaiates, Gonçalo Eanes e Vicente Anes. (…) O ‘Governo Provisório’ não pactuou com a insurreição dos ventres ao sol e enviou ao Alentejo uma hoste comandada pelos burgueses expulsos de Évora , Beja e outros lugares, sob o comando supremo de Nuno Álvares Pereira. (…) O incidente de Vila Viçosa com Vasco Porcalho mostra como os burgueses não pactuavam com a insurreição popular. Este Porcalho. capitão de vila, fora preso por conluio com o rei de Castela. E quando o povo bradava: ‘Morra o traidor com quantos tem! Dizendo que lhe pusessem fogo, fizeram-nos estar quedos.’ Aos Álvaros Coitados não convinha que a revolução degenerasse em jaquerie».
A forma como Borges Coelho reconstitui a narrativa de um tempo é materialista, mas não se esgota aí. No curso e na vontade do rio da história atuam muitos sujeitos, e se é verdade que as condições em que vivemos nos condicionam, também não é menos verdade que podemos ter a inteligência de as alterar.