Foi por três vezes notícia esta semana e pelas piores razões. Em dois dias consecutivos, a Avenida da Liberdade foi palco de três acidentes – na terça-feira, um autocarro turístico embateu contra uma árvore, provocando treze feridos, enquanto no dia seguinte um acidente com uma ambulância e um ligeiro feriu quatro pessoas e outro, com um motociclo e um ligeiro, feriu uma pessoa.
A proximidade dos acidentes desta semana na Avenida surpreende, e o SOL quis saber a frequência com que, por lá, acontecem. O número tem vindo a crescer: os 76 acidentes em 2015 foram ultrapassados por 80 em 2016 e chegaram aos 90 em 2017. Quanto a vítimas, são na sua maioria feridos leves e não há registo de mortes nesses anos. A tendência de aumento, porém, não deve causar estranheza: só em 2017, a compra de carro aumentou 8%. E a Baixa de Lisboa parece ser cada vez mais movimentada.
Mas aquela que é uma das imponentes avenidas da cidade já viu acontecer, no passado, outros acidentes, mais aparatosos e protagonizados por caras conhecidas. Foi o caso de Serguei Cherbakov, antigo avançado do Sporting. Numa noite de dezembro de 1993, o jogador tinha bebido mais do que devia e subia a avenida a alta velocidade. Não parou num sinal vermelho e outro carro embateu no dele. Tinha 22 anos e uma carreira promissora pela frente que acabaria nessa noite: o acidente deixou-o paraplégico e colocou-o numa cadeira de rodas.
Mais recentemente, em 2009, Mário Mendes, à data secretário-geral do Sistema de Segurança Interna, esteve envolvido num acidente quando se deslocava para a tomada de posse dos governadores civis, no Ministério da Administração Interna. O carro onde seguia foi abalroado por outro e os ferimentos do juiz acabariam por levá-lo a ficar internado no Hospital de São José.
Um jardim para a cidade
Outros acidentes e incidentes haverá nas páginas da história. O lugar onde é hoje a principal artéria da capital, e onde convivem diariamente a agitação de milhares de carros e a tranquilidade dos espaços verdes nos passeios largos, começou por ser um jardim que remonta ao século XVIII. «Depois do terramoto de 1755, houve uma preocupação com a requalificação do centro da cidade. Foi então que o Marquês de Pombal, que esteve noutros países, viu que faltava um espaço para conviver e quis resolver isso», explica ao SOL a historiadora Maria João de Figueiroa Rego, autora do livro Avenida da Liberdade.
As obras arrancaram em 1764 a norte do Rossio, no lugar das antigas Hortas da Cera, e a cidade ganhou «um bosque, cercado por grandes muros, com 15 janelas de ferro. A população deslocava-se para ali para fruir de um espaço verde».
Porém, na década de 30 do século XIX, o bosque, chamado de Passeio Público, «já não satisfazia as exigências da cidade» e em 1835 avança-se com uma remodelação, assinada pelo arquiteto Malaquias Ferreira Leal. O bosque passou então a jardim e, entre várias alterações, o passeio foi alargado, construiu-se uma cascata junto à entrada norte e abriram-se lagos, decorados com estátuas representando o Tejo e o Douro – que, de resto, ainda hoje adornam a avenida. «As primeiras árvores plantadas, aquando da construção do Passeio, foram demolidas, e isso causou grande celeuma», conta a historiadora. Algumas das atuais foram plantadas muito mais tarde, na década de 50 do século passado. Nesta primeira remodelação, o escritor Alexandre Herculano foi um dos principais críticos da decisão, mas apesar da contestação que invadiu os jornais, a verdade é que, partir daí, mais do que um local de passeio, o Passeio Público começou a ser uma local de entretenimento, com «espetáculos de ópera e outros, de artistas franceses e espanhóis, nos novos coretos, e até momentos de fogo de artifício».
Vigiado por guardas, abria ao nascer do sol e fechava às seis da tarde. «À noite voltava a abrir, mas já com entrada paga. Às oito horas era a iluminação do Passeio Público, que era um momento especialíssimo – a iluminação do passeio público foi inaugurada em 1849 com candeeiros a gás –, e alugavam-se as cadeiras para assistir. O dinheiro revertia a favor dos asilos da mendicidade. Havia também essa consciência social», diz Maria João. «Foi uma avenida que nasceu para ser moderna», acrescenta.
A expansão da cidade
Entretanto, a cidade expandia-se para norte e fazia falta ligar a zona antiga à zona nova. Surgiu então a ideia de derrubar o Passeio Público e de construir uma boulevard, à semelhança dos parisienses Campos Elísios. Apesar de uma reação fortemente negativa da população, que não queria dizer adeus ao Passeio Público – «chegou a haver vários abaixo-assinados a dar entrada na câmara para impedir a construção», recorda a historiadora –, depois de traçados muitos projetos, o projeto final da Avenida da Liberdade coube a Ressano Garcia. As demolições arrancaram em 1879 e a nova avenida foi inaugurada em 1886. Ao longo do tempo, foi recebendo estatuária diversa e sofrendo alterações através de projetos de vários arquitetos.
Muito do que foi pensado para a avenida, contudo, nunca chegou a sair do papel. «A avenida é muito mais do que aquilo que está construído. Aquilo que está construído são 20% da história», diz ao SOL o arquiteto João Sousa Morais, coautor da obra Avenida da Liberdade – Arquitetura e Cidade com a arquiteta Filipa Roseta, que reúne todos os planos arquitetónicos feitos para o local. Para o especialista, a Avenida da Liberdade é única e muito diferente dos Campos Elísios, ainda que a avenida parisiense tenha servido de inspiração. «A avenida não vale propriamente pelo edificado, não tem um edificado de grande qualidade – como os Campos Elísios, por exemplo –, mas vale fundamentalmente pela tipologia de espaços públicos, que é inédita», defende.
Os edifícios emblemáticos da avenida, por exemplo, contam-se com duas mãos. O arquiteto destaca a velha sede do Diário de Notícias, projeto de Pardal Monteiro, o do Cineteatro Éden, traçado por Cassiano Branco e o do Teatro Tivoli, da autoria de Raul Lino.
João Sousa Morais salienta que o que distingue a avenida lisboeta é «o traçado e a dimensão – maior que os Campos Elísios –, a perspetiva sobre o rio, o microclima, o facto de proporcionar uma situação de passeio e de ter também a ligação rodoviária. É um conjunto que é único», assinala. Esta dinâmica leva Maria João a defender que «a avenida que se conhece quando se passa de carro é uma, e a que se conhece quando se passeia nos passeios é outra. A pé parece até que nem estamos no meio dos carros».
Entretanto, a cidade cresceu para lá da avenida. «Keil do Amaral acabaria por fazer o prolongamento da avenida e é da sua autoria o Parque Eduardo VII em 1945», diz o arquiteto.
Uma questão de memória
Ao longo do tempo, especialmente a partir do século XX, a avenida vestiu várias tendências: foi a avenida do espetáculo, com os vários cinemas e teatros, a avenida dos escritórios e, mais recentemente, a avenida das lojas e dos hotéis. Hoje, nota a historiadora, deu-se uma reviravolta interessante: «Há uma avenida que volta a ser vivida como era no seu início, com a população ali a passear, devido aos quiosques. Isso ao longo do tempo foi-se perdendo um pouco e agora há outra vez uma fruição da avenida como espaço de recreio».
A Avenida da Liberdade assume, assim, um importante papel na memória coletiva da cidade. Até porque, diz João Sousa Morais, «está associada aos grandes acontecimentos e às grandes manifestações. Às grandes questões da vida de Portugal, no fundo». É por isso que o arquiteto defende que alguns dos edifícios emblemáticos deviam ser protegidos de alguma maneira, para perpetuarem essa memória. «Quase que a Avenida devia ser condecorada», defende João Sousa Morais.