Há ano e meio, Cristina Branco voltou à escola. “Menina” tirou-a do respaldo e desarrumou a ordem, sem renegar o passado. Como sempre, como nunca, Cristina Branco reflete sobre a passagem do tempo e o questionar permanente do adquirido
O “Menina” foi o princípio de uma segunda vida?
Não, isso dá-lhe uma carga que lhe queria tirar. Não consigo ver a música dessa forma. Quando muito, é o fechar de um período. É um processo, um tempo encerrado ali. E esta é a segunda fase.
O que é que houve antes e há depois?
O “Menina” não era suposto ser “Menina”. Imagina que estou a fazer um disco novo. Quando aquilo estava a surgir, senti que estava a seguir o mesmo caminho. Tornou-se um ciclo vicioso. Sem me dar conta, tinha entrado em velocidade de cruzeiro. Comecei a achar que tudo estava requentado, que tudo era mais do mesmo. Fiquei muito saturada. Resolvi romper e recomeçar. Deitar por terra para fazer outra vez. É assim que aparecem estas pessoas [os autores]. Eu já fui estas pessoas, numa outra ponta da música, também já tentei fazer coisas novas, portanto é com eles que vou aprender. Vou voltar à escola. Eles foram o fim e o início.
Voltar à escola com os alunos?
Claro, estás sempre a aprender! Se tiver alguma coisa a ensinar a alguém, tem a forma com a forma de viver. Não sou nada de impor ideias. Aprendo com aquilo que observo. Com quem está a viver. E eu senti-me a não viver, numa centrifugação. É complicado sair da caixa porque é vertiginoso. Estou sempre a questionar tudo e é isso que me dá frescura e me fez libertar de tantas camadas que estavam a mais. Tenho imensas coisas para dizer.
O tempo é inimigo do desconhecido?
No meu caso, acho que tem sido ao contrário. É preciso dar o passo perante o abismo. Não saber o que vem a seguir. Quando convidei [os autores do “Menina] dei um passo no desconhecido. E hoje acho que foi a melhor coisa que fiz. Hoje, em vez de trazer uma mala de porão, trago uma de compartimento. Sempre achei que não era preconceituosa mas se calhar estava a ser. Limpei tudo, até a casa. Preciso de tão pouco para ser feliz.
“Branco” de nome e de luz?
Também. De luz, de novidade. Algo que vai começar.
Unificar tantas visões da portugalidade foi o desafio?
Alguns estão mais próximos [entre si] do que outros. Esse fio condutor surge quando se juntam a Cristina e os músicos. A linguagem própria une as pontas, do indie, ao alternativo, ao jazz até à eletrónica. Toda a gente foi a jogo à procura do que sou. Esse desafio foi muito estimulante de parte a parte. Há autores que me conhecem há muitos anos como o Sérgio [Godinho] e o Mário [Laginha]. Todos os outros são bastante novos na minha vida. Participaram no disco anterior [Menina] e esta é uma nova aventura. Há uma nostalgia nos textos e nas composições. Uma tonalidade subjacente. Não é deliberado, aquilo é nosso. Na canção do Jorge Cruz [Diabo na Cruz], o texto é seríssimo e fala sobre uma mulher fragilizada – não importa o género. A história é contada na primeira pessoa. Não é todos os dias que se recebe uma história daquelas para contar em três minutos.
O Sérgio Godinho usou um processo semelhante no álbum “Nação Valente”, deste ano. Em entrevista ao i, usou a palavra apropriação para descrever a relação com a matéria-prima dos autores.
Sim, fico com a sensação que eles esperam sempre encontrar-se. Ou verem-se refletidos, mas isso raramente acontece. Quando interpretas os autores, a canção passou a ser tua. Eles têm que fazer esse luto. O [Luís] Severo dizia numa entrevista que achou chocante porque de repente a canção já não era dele. Claro que não! Já passou, foi processada. Filtrada. Mal gravamos, enviamos logo [a canção] para os autores ouvirem, opinarem e aprovarem. Os emails de retorno são sempre: “já não é a minha música”. Pois não! (ri-se) Para mim, é uma vitória.
O fado diluiu-se?
Epá…Eu percebo. Este álbum não tem fado. Há um tema que remete para esse universo, o do Severo, e que vem de uma conversa que tivemos. O fado para mim não desaparece porque faz parte do concerto. Jamais estarei preparada para me libertar dele. Porquê? Porque o fado me foi chegando de uma forma natural, com aprendizagem. Acomodámo-nos um ao outro. Para mim, está fado no “Branco” e não só no som da guitarra portuguesa. Ele está lá, caramba! Na interpretação, na forma como abordo as palavras…O meu primeiro contacto com o fado é num disco da Amália Rodrigues em que ela não canta fado, o “Rara e Inédita”. O que me apaixonou foi a forma como ela cantava e atacava as palavras. Para mim, está lá a intensidade do fado.
A intensidade de ser mulher?
De ser uma mulher com mais experiência. Não faço muitas distinções. O que sempre afastou a mulher do homem é o que não devia acontecer. Quando se dá a aproximação, cria-se a igualdade porque tanto se luta. As mulheres são diferentes, e ainda bem, mas a minha intensidade tem mais a ver com procura pessoal.
Como é que observa o debate na sociedade?
É importante, mas não devia ser. Essa é que é a questão. Temos as mesmas capacidades, e se fossemos tidos de igual para igual, não haveria esse fosso.
O meio é muito masculino?
Tem momentos.Quando estive grávida, foi complicado. Aí notei esse fosso. Quando quis engravidar do meu segundo filho, tive que anunciar com um ano de antecedência. Foi complicadíssimo porque me disseram que dentro de um ano ia haver uma mega digressão em França (trabalhava para a Universal francesa). E eu alertei que queria ser mãe. Foi uma confusão dos diabos. Aí senti uma crispação. De ser mulher, de ser mãe. Digerir isso tudo não é fácil. Sim, nesse caso houve muito preconceito. Fiz a promoção do “Kronos” depois de ter sido mãe há dez dias e duas semanas depois estava a caminho de França para uma digressão de quinze concertos com a família toda. Foi muito duro.
É otimista?
Sim, acredito que a nossa sociedade faz um esforço generalizado para evoluir. Claro que há montes de incongruências. Está sempre a acontecer dar um passo à frente e dois para trás.
A relação dos portugueses com a música portuguesa mudou?
Mudou…se mudou! Assisti a tudo. Há vinte anos, se não fosse fado as pessoas não reagiam. Era um público muito envelhecido. Há público que se manteve e chegaram as pessoas novas. E não tem só a ver com as redes sociais. Não, foi porque a música portuguesa se aproximou das pessoas. Passou a observar em vez de olhar apenas para o umbigo. As pessoas passaram a gostar mais delas próprias. E de ser portuguesas.
Uma questão de identidade?
Claro, descobrimos o ouro. E o fado foi fundamental. De repente, as pessoas perceberam que era incrivelmente português. A minha geração não gostava de música portuguesa. Quando muito do Rui Veloso. E depois tinhas os Trovante e os Madredeus. Havia uma vergonha que se perdeu.