O executivo da Câmara Municipal de Braga aprovou, no passado dia 19 de fevereiro, um regulamento interno sobre a prevenção de consumo de álcool dos seus funcionários. A partir de agora, os trabalhadores que desempenhem funções «na via pública ou que manuseiam equipamento ou maquinaria perigosa» e que revelem «sinais evidentes de etilização» passarão a fazer exames de alcoolemia, em tudo semelhantes aos realizados nas operações stop das forças de segurança. Os limites permitidos são os mesmos. Isto é, menos de 0,5g/l. No mesmo documento, a Câmara passou a proibir a «aquisição e consumo de bebidas alcoólicas» nas suas instalações. A mesma fonte adiantou que o executivo avançou com esta medida por «imposição legal» do regime jurídico de segurança e saúde no trabalho, que estabelece que a entidade empregadora deve adotar medidas de promoção de segurança e saúde no local de trabalho.
Questionada se a Câmara já tinha realizado testes aos seus trabalhadores desde a aprovação do regulamento, fonte oficial disse ao SOL que o «recente início de vigência do Regulamento» ainda não o permitiu.
O caso da Câmara de Braga não é único. Nos últimos anos vários executivos camarários têm pedido autorizações à Comissão Nacional de Proteção de Dados para procederem a exames de alcoolemia e consumo de psicotrópicos aos seus trabalhadores. Foi o caso da Câmara Municipal de Loures (2014), Albufeira (2014),Vale de Cambra (2017), Azambuja (2017). Questionadas sobre esta medida, as câmaras não responderam até ao fecho desta edição.
Contactada pelo SOL, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) anunciou que nos primeiros meses de 2018 recebeu 25 pedidos de autorização para «tratamento de dados com a finalidade de controlo de alcoolemia e substâncias psicoativas no contexto laboral» de entidades públicas e privadas, não referindo quantas autorizações já foram concedidas nesse mesmo período. A entidade de regulação e fiscalização de dados pessoais anunciou também que recebeu 211 pedidos em 2014, 80 em 2015, 90 em 2016 e 122 em 2017. No total, entre 2014 e os primeiros dois meses de 2018, a instituição recebeu 528 pedidos e autorizou 485 referentes a exames de álcool e psicotrópicos. Para que uma entidade empregadora possa proceder as estes testes deve primeiro elaborar um regulamento, pedir e aguardar pela autorização da CNPD, além de ter de suportar com todos os seus encargos financeiros.
Numa rápida pesquisa ao site da Comissão, foi possível aferir que a grande maioria das autorizações da Comissão referem-se à instalação de câmaras de videovigilância nos locais de trabalho.
O SOL falou com especialistas em Direito do Trabalho para perceber em que situações se podem exigir aos trabalhadores a realização de exames de despistagem de consumo de álcool e estupefacientes.
«A obrigatoriedade da sujeição de trabalhadores a testes de alcoolemia ou consumo de estupefacientes obviamente que invade a intimidade e privacidade do trabalhador e, portanto, há aqui uma compressão dos seus direitos, liberdades e garantias. No entanto, entende-se que se justifica se verificados os pressupostos, isto é, a necessidade, a adequação e a proporcionalidade», explicou António Garcia Pereira, advogado especialista em Direito Laboral, acrescentando ainda que «estes princípios têm de ser aferidos em concreto em função de cada caso». Opinião partilhada por Luís Gonçalves da Silva, professor da Faculdade de Direito de Lisboa e Consultor da Abreu Advogados, que considera que os «testes são, em regra, proibidos, exatamente por serem suscetíveis de colocar em causa o direito à privacidade do trabalhador ou até mesmo o direito à sua integridade moral e física».
Ainda assim, o docente refere que existem «situações excecionais» em que estão em causa a «proteção do trabalhador ou de terceiros», obrigando o «empregador a fundamentar, por escrito, o recurso aos testes». Ou seja, apenas se pode impor testes deste género a trabalhadores que desempenhem funções de risco para si e para terceiros.
Garcia Pereira tem a perceção de que «aumentou o número de entidades empregadoras que passaram a querer instituir este sistema», abrangendo todos os trabalhadores e não apenas os que desempenham funções de risco. O advogado alertou ainda para o que considera ser uma armadilha do Código de Trabalho na relação empregador-trabalhador. «Isto muitas vezes é feito através de um regulamento interno e é preciso ter cuidado porque há uma armadilha no Código de Trabalho, no n.º 2 do artigo 104.º, que diz que o trabalhador tem de se opor por escrito, caso contrário é uma aceitação tácita». Esse desacordo tem de ser expresso até um máximo de 21 dias a contar da publicação do regulamento. O especialista referiu ainda o aparecimento de «normas sob a capa formal do regulamento interno» acabarem por ser «tidas como normas legais atualmente aceitáveis entre empregador e trabalhador», assumindo-se como aditamento aos contratos de trabalho nos casos em que esses exames não estão incluídos, nomeadamente no que a profissões com risco próprio ou de terceiros concerne. Opinião que não é totalmente partilhada por Gonçalves da Silva, que julga não serem «comuns» estas situações mas que podem acontecer por desconhecimento do quadro legal pelos trabalhadores. Ainda assim, o advogado alertou para o facto do empregador ter de, no próprio regulamento, dar «as razões que justificam este mecanismo».
Entre a lei e a realidade
Garcia Pereira e Gonçalves da Silva consideram que entre a letra da lei e a sua aplicação vai alguma distância. E o caso destes testes não é exceção.
Para Garcia Pereira, a assimetria na relação entre empregador e trabalhador repercute-se em situações em que o primeiro tenta impor ao segundo a obrigação ilícita de testes de alcoolemia e estupefacientes, com o trabalhador a ver-se condicionado. «Se o trabalhar não conseguir muito rapidamente intentar um procedimento cautelar para suspender os testes», explicou o especialista, «enquanto se discute a ação principal sobre a legalidade e constitucionalidade, então no primeiro momento a entidade empregadora fica com a faca e o queijo na mão», por a desobediência constituir justa causa de despedimento no Código de Trabalho, podendo resultar no seu despedimento. Com base na sua experiência profissional, Garcia Pereira disse que os trabalhadores, por vezes, fazem os exames sob declaração de «reserva» ou sem que tal signifique qualquer «concordância» com a norma.
Por sua vez, Gonçalves da Silva afirma que o trabalhador poderá recusar «sempre que a ordem for ilícita», apresentando «queixa junto da Autoridade para as Condições de Trabalho». Ainda assim, o advogado considera que quando os empregadores avançam com processos de despedimento por justa causa estão «convencidos que ganham» e que quando não o estão recorrem a outros mecanismos, como alteração de horários para dificultar a vida do trabalhador. «A ilegalidade também se foi refinando. Aqueles tempos em que o empregador gritava, insultava e destratava em que toda a gente ouvia já passaram. Hoje em dia, as situações de assédio são refinadas e de muito difícil prova», explicou.