Itália acordou ontem com uma daquelas notícias que ninguém quer dar, quanto mais receber: Davide Astori, central internacional e capitão da Fiorentina, falecera no quarto de hotel onde estava concentrado com o clube para o jogo no terreno da Udinese, ao que tudo indica de forma súbita enquanto dormia. Mais uma cruel ironia do destino, esse substantivo abstrato que tantas vezes gosta de baralhar os planos dos seres humanos, quais fantoches nesta existência fugaz.
Astori tinha apenas 31 anos – completados em janeiro último – e ainda na semana que passou havia renovado o vínculo com o clube viola, onde comanda um balneário que fala português por intermédio de Bruno Gaspar e Gil Dias – e que ainda nas últimas duas temporadas foi orientado por Paulo Sousa. Não era nenhum Cristiano Ronaldo ou Messi, não dava nas vistas, não aparecia nas capas de jornais e revistas da especialidade. Em Itália, todavia, todos conheciam bem as suas qualidades como jogador e como pessoa – razão pela qual as lágrimas se apoderaram de forma instantânea dos olhos dos jogadores de Génova e Cagliari (clube que Astori representou de 2008 a 2014, e onde foi colega do médio português Rui Sampaio, hoje a representar o Cova da Piedade) assim que, em pleno relvado, souberam da notícia.
Esse encontro, marcado para as 11h30 de ontem, não chegou a ter início. Como não teve nenhum dos outros seis jogos agendados para este dia (entre os quais o dérbi de Milão, entre o AC Milan e o Inter): de luto, a organização da Serie A decretou o adiamento de todo o futebol profissional no país.
Davide Astori habituou-se desde cedo a lutar por um lugar ao sol. Formado no AC Milan, nunca chegou a conseguir alinhar pela equipa principal dos rossoneri. Após empréstimos aos secundários Pizzighettone e Cremonese, e percebendo que nunca viria a ter espaço no gigante de Milão, assinou aos 21 anos pelo Cagliari. Viria a cumprir um total de 179 jogos e três golos no conjunto da Sardenha, destacando-se de tal modo que chegou à seleção italiana. De azzurra ao peito, fez 15 jogos (o último dos quais em setembro passado, numa vitória por 1-0 sobre Israel na qualificação para o Mundial que os italianos acabariam por falhar) e um golo, decisivo para o terceiro lugar italiano na Taça das Confederações, em 2013.
O jogador e o homem Em 2014, já um central de créditos firmados, foi contratado pela Roma, onde uma lesão num joelho travou o crescimento. Seguiu-se a Fiorentina e a afirmação imediata: no conjunto viola, para sempre ligado a Portugal pelos anos de genialidade que Rui Costa passeou em Florença, Astori rapidamente se tornou líder, em campo e fora dele. Muito inteligente, evoluído no posicionamento e a sair a jogar, fruto da qualidade técnica, era um central elegante, refinado. “Sou um tipo que gosta de refletir. Mas tenho de dizer sempre o que penso. Líder? Não sei. Não quero parecer presunçoso, mas sou importante dentro deste grupo da Fiorentina”, dizia ao “La Nazione” em fevereiro do ano passado.
Como homem, passamos a palavra a Gianluigi Buffon, um dos grandes cavalheiros da história do futebol e que privou com o malogrado atleta na seleção italiana. “Dificilmente expresso publicamente o que penso acerca das pessoas, porque sempre acreditei que a beleza das relações, o respeito mútuo e o afeto não deviam ser explorados, nem usados por pessoas que não têm a delicadeza de respeitar tais ligações. No teu caso, sinto que tenho de abrir uma exceção à regra, porque tens uma mulher jovem e familiares que estão a sofrer, mas especialmente uma filha pequena que merece saber que o pai era, em todos os aspectos, uma pessoa do bem… Uma enorme pessoa… que era a imagem dos valores de um mundo passado, em que valores como o altruísmo, a elegância, a educação e o respeito pelos outros eram prioritários. Parabéns, foste uma das melhores personalidades do desporto com quem me cruzei”, escreveu o lendário guardião da Juventus.
“Estranho”, diz a polícia de Udine Na manhã do dia em que iria cumprir o jogo número 394 da carreira como profissional de futebol, Davide Astori não acordou. O homem, apaixonado também por arquitetura, tecnologia e música, casado e com uma filha de apenas dois anos, faleceu de súbito, durante o sono, aos 31 anos e na plenitude da forma física. “A ideia é que o jogador tenha falecido por uma paragem cardiorrespiratória por causas naturais”, afirmou Antonio Di Nicolo, da Procuradoria de Udine, acrescentando no entanto ser “estranho que aconteça algo como isto a um profissional com acompanhamento regular sem sinais anteriores”.
É, de facto, incrível. Mas basta perder uns minutos para recordar de pronto inúmeros casos semelhantes, principalmente no futebol mas também noutras modalidades, ao longo dos últimos anos. À memória de qualquer português vem, de imediato, a morte de Miklós Fehér, avançado húngaro que representava o Benfica e que caiu inanimado naquele fatídico 25 de janeiro de 2004 em pleno relvado do Estádio D. Afonso Henriques, em Guimarães, com todo o país a assistir em direto.
Em 2012, médicos especialistas da FIFA contabilizavam a morte de 84 jogadores de futebol devido a problemas cardíacos enquanto treinavam ou disputavam jogos só nos cinco anos mais recentes, com média de idades cifrada nos 24,9 anos – e isto, tendo em conta apenas os registos das federações nacionais.
Em Itália, o caso mais mediático de morte súbita nos últimos anos havia ocorrido a 14 de Abril de 2012, quando o médio Piermario Morosini, então a representar o Livorno, da Serie B, sofreu uma paragem cardíaca em pleno jogo com o Pescara. Viria a falecer horas depois, já no hospital. Tinha apenas 25 anos.
A morte de Davide Astori acontece poucas horas depois de outro trágico evento, este no futsal espanhol: o técnico de equipamentos do Inter Movistar, onde alinha o internacional português Ricardinho, faleceu durante o jogo com o Naturpellet Segovia, da Liga espanhola de futsal. Cecilio Rodriguez, de 62 anos, caiu na zona da área técnica da equipa a cinco minutos do final da primeira parte; o jogo foi de pronto interrompido, com os profissionais médicos das duas equipas a tentar a reanimação com um desfibrilador, mas nem a intervenção das equipas de emergência obteve resultados práticos, para consternação de todos os presentes.