Fala com a maior das naturalidades de impressoras de comida, scanners que dizem os nutrientes de cada alimento ou talheres que vibram quando comemos rápido demais. Assume-se como um geek, “mas um geek que só quer ver as pessoas a usar a tecnologia para terem uma vida melhor”. Bertalan Meskó veio da Hungria para a Conferência Portugal Saudável e para ensinar ao país que a saúde digital é já uma realidade. Não quer que os médicos desapareçam nem que nos alimentemos de comprimidos para astronautas. “Quero, sim, ver as pessoas menos dependentes da figura do médico e mais seguras sobre o que é melhor para si.”
A tecnologia chegou finalmente ao setor alimentar. Demorou mais tempo do que devia?
As pessoas não gostam quando a tecnologia entra naquilo que fazem todos os dias. Além disso, acho que a comida é algo mesmo especial. A tecnologia já é visível na forma como compro, como me desloco, mas ainda pouco na forma como me alimento.
Diria que é algo quase sagrado?
É sagrado, é tradicional e é pessoal. Daí a dificuldade em introduzir tecnologia neste setor.
Falamos agora de um novo tipo de alimentação?
O meu interesse está na tecnologia; a nutrição, deixo para os nutricionistas. Aquilo em que me foco está relacionado com a forma como podemos usar a tecnologia nos cuidados de saúde e, neste caso, refiro-me a inteligência artificial, scanners de comida ou aplicações que medem calorias.
Onde é que já podemos ver essa tecnologia a tomar forma?
Essencialmente online, por isso digo que está em todo o lado.
Mas são coisas que já existem no mercado?
Sim, o scanner de comida já está à venda, os chatbots – programa de computador que simula uma conversa com outra pessoa – já existem e estão cada vez mais precisos. Vai ser possível fazer o upload de informações do teu ADN para que recebas aconselhamento sobre o que deves ou não comer. Eu sei que isto soa a ficção científica, até porque são coisas que não estamos habituados a ter à mesa, mas elas existem e vão chegar a toda a gente.
Toda a gente mesmo?
Bom, são coisas caras. Um scanner de comida custa à volta de 400 euros, mas tudo o resto é gratuito através de aplicações para telemóveis.
Essa tecnologia vai fazer-nos comer melhor?
Ao longo das últimas gerações, temos vindo a recolher informação sobre o que devemos ou não comer. Mas mais do que comer melhor, é saber o que estamos a comer. Basta olhar para estas mesas [aponta para o catering da conferência] para ver que cada prato tem um papel a explicar do que se trata, ou para os menus dos restaurantes, que já começam a ter informações sobre a presença de glúten ou de produtos potencialmente alergénicos.
Isso vem ao encontro de um público cada vez mais preocupado com a alimentação. Porque é que isso acontece agora?
Esse movimento pela comida mais saudável baseia-se no facto de as pessoas saberem como reagem a cada tipo de comida. Eu, por exemplo, sei que se comer coisas com açúcar não me vou concentrar nas três horas seguintes. Escolho não comer não porque alguém me diz, mas porque sei os efeitos que tem em mim. Não é um processo fácil, atenção. Para isso lutamos com aquilo que vem de gerações anteriores, com os hábitos que temos desde criança e com uma internet com 90% de informação pouco rigorosa. É esse o meu objetivo, ensinar as pessoas a gerir a tecnologia para passarem a viver melhor.
E como é que as ensina?
Não é fácil. Temos de tornar o tema apelativo, tenho de entrar na mente da pessoa, seja uma criança ou alguém mais velho.
Mas imagino que seja mais difícil mudar comportamentos numa pessoa mais velha.
A questão é: e valerá a pena mudar os hábitos de uma vida inteira? Eu quero mudar é a forma como eu como e como os meus filhos comem. O que não podemos é ficar presos à ideia de que as gerações anteriores sabem mais que a nossa.
Mas quando falamos em tecnologia na alimentação, imagino entrar numa cozinha cheia de robôs. É disso que se trata?
Espero que não. Estou certo de que a cozinha do futuro será muito mais tecnológica do que a que temos hoje em dia. Mas a minha lógica é: não uso a tecnologia para comer, tenho é a necessidade de comer melhor e, para isso, recorro à tecnologia.
E essa tecnologia vai tornar a comida mais saudável ou, por outro lado, mais artificial?
Eu diria ambas as coisas, dependendo da região. Em zonas onde a comida é escassa, talvez a introdução de comida feita com base em tecnologia ajude a aumentar o nível nutricional da alimentação do dia-a-dia. Em países desenvolvidos, com acesso a todo o tipo de comida, pode servir para diminuir os números da obesidade. Seja como for, temos de saber lidar com essa tecnologia, até porque ninguém quer ter um Dr. Big Brother no ombro a dizer o que comer.
Costuma usar o termo saúde digital. De que se trata?
É uma forma de transformar o sistema de saúde. Inclui a tecnologia, mas não só. O objetivo é fazer do paciente o centro da questão. Nesta nova era digital, os pacientes ganham cada vez mais poder sobre os seus cuidados e tornam-se especialistas na sua própria saúde.
Mas não através do Dr. Google.
De todo. Precisamos de especialistas, precisamos de tecnologia, precisamos de saber, e eu não quero que esse saber chegue a uma pessoa por dia, quero que chegue a 30 milhões por segundo. O paciente do futuro tem de deixar de ir ao consultório e fazer o que o médico diz, tem de sobressair, tomar iniciativa, ser proativo na hora de gerir a sua saúde.
Mas vamos deixar de ter de ir ao médico?
Não, mas ele será mais uma figura orientadora da ação do que propriamente um guru que nos diz o que fazer, porque só ele é que sabe.
Temos agora pacientes muito mais bem informados. Os médicos acompanham essa realidade?
De todo. Isso requer toda uma nova forma de olhar para a profissão. Veja o meu caso. Eu sou um bocadinho obcecado, acelerado, e por isso nunca dormi muito bem. Comprei um smartwatch, descarreguei uma aplicação e passei a monitorizar o meu sono, e com isso aumentei a minha qualidade de sono. Quando fui ao médico de família para a minha consulta anual de rotina, ele perguntou–me sobre isso porque, genuinamente, não sabia que havia essa forma de tratar o meu problema.
Passou a dormir melhor?
Nunca ninguém me disse o que fazer, eu aprendi por tentativa e erro. Percebi que se bebo cerveja à noite, se vou ao ginásio já ao fim do dia ou se me ponho ao telefone antes de ir para a cama, é certo que não vou dormir bem. Aprendi que, por exemplo, basta fazer meia hora de exercício por dia para dormir melhor.
Foi fácil chegar a essas conclusões?
Recorrendo à tecnologia, sim. Acordava e registava na aplicação como tinha sido o meu sono e aquilo que tinha feito no dia anterior: se tinha feito exercício, se tinha bebido vinho. Esse cruzamento de dados é que me ajudou a perceber o meu comportamento.
Chegou a comparar o paciente de hoje em dia com um astronauta em Marte. Porquê?
Essa é uma analogia que uso quando falo com médicos ou pessoas com cargos de poder na medicina, até porque muitas vezes são aqueles que têm mais dificuldade em perceber o que é estar no papel do doente. Ser paciente, hoje em dia, é um sentimento horrível, de isolamento, de não ter ninguém que perceba. O doente apenas recebe informação de uma forma distante e pouco personalizada, e, simplesmente, segue ordens.
Mas imaginemos o cenário do futuro: estou doente, vou ao médico e…
Pode parar já! A ideia é mesmo essa, não tenho de ir ao médico, é o médico que vem até mim. A primeira linha do diagnóstico virá da inteligência artificial, terá respostas através de um chatbot, por exemplo. A partir daí, se for necessário, poderei ir ao médico, mas não na primeira linha de diagnóstico. Acho que a partir daí, as pessoas vão dar mais valor à figura do médico.
É a inteligência artificial a chegar à medicina?
Sem dúvida. Mas atenção, a ideia não é substituir o papel do médico, mas sim complementar esse trabalho. O homem é um animal social; se o tratamento for dado de igual forma por um médico ou uma aplicação, eu vou sempre preferir o médico. A relação humana traz empatia, e isso é essencial. Eu vou a um médico porque confio nele, porque sinto empatia, e eu nunca vou sentir isso por um robô.
Vê então a tecnologia como um fator de integração mais do que de segregação.
Eu sou um geek, não tinha como ver as coisas de outra forma. Eu quero viver lado a lado com a tecnologia, mas quero ser humano, não um ciborgue. Quero que os meus filhos sejam especialistas em tecnologia, mas quero que eles corram ao ar livre.
Ligar a tecnologia à saúde sempre foi um objetivo do seu trabalho?
Desde que tinha seis anos que o meu objetivo era tornar-me investigador na área da medicina e da genética. Quando lá cheguei, percebi que me faltava algo e esse algo era a minha paixão pela tecnologia. Foi aí que me tornei uma espécie de embaixador desta ideia de pôr a tecnologia ao serviço da saúde.
Depois de tantos anos de investigação, vê algum limite no seu interesse por tecnologia?
Sei que o meu interesse por inteligência artificial não tem fim, isso sei. Acho que vi todos os filmes de ficção científica que existem, li todos os livros publicados e peço a quem saiba de algum filme independente, rebuscado, algum livro menos conhecido, que por favor me faça chegar essa informação.
O seu interesse não tem limites. E a tecnologia, tem?
Eu tenho limites mas, quando falamos de tecnologia, esses limites baixam. A tecnologia, essa, não tem limites.