Numa altura em que o sexismo e o assédio sexual estão na ordem do dia, depois da criação do movimento #MeToo, a era das mulheres usadas como atração em eventos de desportos dominados por homens parece estar prestes a terminar. Depois da Fórmula 1 e do ciclismo, o Salão Automóvel de Genebra, que arranca esta quinta-feira, anunciou o fim da contratação de modelos para posarem junto aos carros em exposição. Na edição deste ano do certame suíço, muitos dos fabricantes de automóveis optaram por contratar profissionais do setor, homens e mulheres, que poderão esclarecer as dúvidas dos visitantes.
Segundo a Bloomberg, marcas como a Renault, Fiat, Peugeot, Nissan, Lexus, Lamborghini e SsangYong anunciaram que não vão ter modelos femininos, com roupas e poses sensuais, a promover os automóveis nos seus stands. Em vez disso, vão ter homens e mulheres escolhidos não pelo aspeto, mas sim pelos conhecimentos técnicos, que poderão explicar as características dos modelos e ajudar os visitantes. Relativamente à roupa dos profissionais escolhidos, alguns fabricantes optaram por roupa desportiva, enquanto outros preferem uma indumentária mais formal.
“Os tempos mudaram. Faz mais sentido usar especialistas nos produtos porque, afinal, estamos ali para vender automóveis”, disse Sara Jenkins, porta-voz da Nissan na Suíça.
No entanto, a troca de modelos femininos por técnicos de ambos os sexos não foi imposta pelo evento. A organização garantiu que os fabricantes que participam no Salão Automóvel de Genebra são livres de decidir como querem promover os seus produtos.
A Toyota e as marcas do grupo Fiat Chrysler Automobiles (FCA), Alfa Romeo, Maserati e Jeep, vão continuar a utilizar modelos, mas de ambos os sexos e com roupas mais discretas. Contudo, o grupo FCA revelou ter terminado o contrato com algumas modelos femininas por estar preocupado com a questão do assédio sexual e com o movimento #MeToo.
Outros casos
No fim de janeiro, também a Fórmula 1 anunciou que deixará de ter mulheres atraentes, vestidas com um uniforme (as chamadas grid girls), quer na grelha de partida, quer no pódio, a comemorar com os pilotos, como era prática comum.
A medida terá já efeito no Grande Prémio da Austrália, que marca o arranque da temporada de Fórmula 1, programado para 25 de março, e será aplicada não só nos eventos principais, mas também em todos os secundários.
“Sentimos que esta tradição não está de acordo com os valores da marca e está em discordância com as normas da sociedade atual. Não acreditamos que esta prática seja adequada ou relevante para a Fórmula 1 e para os seus fãs por todo o mundo, novos e velhos”, explicou na altura o diretor comercial da Fórmula 1, Sean Bratches.
Já no ano passado, a organização tinha anunciado que estava a rever a medida, o que gerou controvérsia não só entre alguns adeptos do desporto, mas também entre atletas, como o belga Max Verstappen ou o alemão Nico Hulkenberg, que se mostraram a favor da continuidade das grid girls. Contudo, a decisão da Fórmula 1 foi aplaudida por outros, como pela Women’s Sport Trust, uma instituição de caridade que procura dar mais visibilidade ao desporto feminino e fomentar o seu impacto.
“Obrigada à Fórmula 1 pela decisão de deixar de usar grid girls. É mais um desporto a fazer uma escolha clara daquilo que defendem”, escreveu a Women’s Sport Trust no Twitter.
As “meninas do pódio” também têm feito parte da tradição das cerimónias de entrega de prémios de ciclismo mas, na Volta à França deste ano, o costume já não vai ser cumprido. No início deste mês, a organização anunciou que na próxima edição, de 7 a 29 de julho, já não haverá mulheres no pódio para as cerimónias protocolares.
A decisão foi tomada depois de os organizadores serem acusados de sexismo. O mau comportamento de alguns atletas agravou a situação, como o caso do eslovaco Peter Sagan, tricampeão mundial, que apalpou uma das mulheres que estavam no pódio no Tour de Flandres em 2013. A Vuelta e o Tour Down Under também já acabaram com a presença das meninas do pódio nas cerimónias.
Longo caminho a fazer
Manuela Tavares, ativista da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), considera que “os avanços verificados na utilização do corpo da mulher como objeto de consumo, feita pelas marcas e pelas organizações dos eventos desportivos, são importantes no sentido de acabarem com esse tipo de práticas”, revela ao i. Contudo, defende que não se pode falar no fim da “mulher-objeto”, uma vez que há ainda um longo caminho a percorrer.
“Apesar da evolução, não podemos deixar de constatar que as mulheres continuam a ser usadas como objeto de consumo na publicidade.” Ainda assim, a responsável admite que já se começa a assistir a alguns cuidados nos anúncios. “Em alguns casos até tentaram inverter a situação, utilizando o corpo do homem também como objeto de atração para a compra de determinados produtos. Mas também não queremos a inversão da situação. Queremos é que os produtos sejam vendidos pelas suas qualidades e não utilizando imagens do corpo como atração e para captar a atenção dos consumidores”, explica uma das fundadoras da associação feminista.
Para Manuela Tavares, o uso de mulheres atraentes com roupas sensuais para atrair o público, nomeadamente nos eventos desportivos, pode fomentar o assédio sexual, uma vez que este se baseia “também na maneira como se olha para o corpo da mulher, como se comenta o corpo da mulher e como se utiliza o corpo da mulher para poder expandir expressões de sexismo”.
A ativista considera, no entanto, que o estatuto da mulher já conheceu avanços, nomeadamente em Portugal. Contudo, acha que as mulheres continuam, em muitas situações, a ser “objetificadas”. “Há ainda um longo caminho por desbravar”, alerta.