Steven Forti. ‘A Segunda República acabou definitivamente no dia 4 de março’

Entrevista ao historiador e investigador italiano Steven Forti sobre a nova etapa política que se abre em Itália com afundamento dos partidos europeístas e a vitória dos populistas. 

O sistema político italiano sempre foi muito instável em termos de governo, mas durou mais de 40 anos em termos de partidos, isso foi quebrado pelos processos das mãos limpas e pela queda da URSS. Hoje passado poucas décadas entrou de novo em crise, qual a razão?

Esta mal amada Segunda República começou depois do escândalo das mãos limpas e a queda do bloco soviético, acontecimentos que levaram à crise do sistema  dos partidos nascidos depois do fascismo. Essa crise, que se dá entre 1992 e 1994, abriu caminho à Segunda República. O interessante é que a primeira torna-se segunda sem que haja nenhuma mudança significativa do quadro constitucional, apenas porque  mudaram os partidos do sistema. Esta Segunda República acabou definitivamente no dia 4 de março. Ao contrário da França, isso não acontece quando muda a Constituição, ou quando há, no meio, um Império ou uma ocupação militar. Em Itália muda-se de República porque muda o sistema de partidos. Aquilo que teve a sua expressão nas eleições é uma nova etapa, que toda a gente está a chamar de Terceira República.

As eleições só deram a confirmação sismológica dessa mudança. Pode dizer-se que a Terceira República começou antes, com a crise económica mundial e o aparecimento do Movimento 5 Estrelas?

Sim e não.  Evidentemente se procuramos as causas, há motivos económicos, mas também institucionais e políticos. A Segunda República está esgotada porque os partidos que tinham sido protagonistas dessa etapa, o Partido Democrático (antigo PDS e ainda mais antigo PCI) e a Força Itália foram completamente derrotados, e eles eram os partidos centrais do sistema. Mas isso aconteceu, também, devido a uma tentativa falhada, nos anos 90, de transformar o sistema político proporcional num sistema maioritário só com dois partidos, que alternariam no poder entre si, como no Reino Unido. A primeira reforma eleitoral dos anos 90, chamada Mattarella, porque o autor foi o atual Presidente da República, Sergio Mattarella, era um sistema pseudo-maioritário, e apesar de o sistema ter dois grandes partidos, havia muitas coligações, em que vários pequenos partidos se somavam, o que complicava muito a governabilidade. Agora ficamos com um sistema com quatro partidos com uma implantação forte, sobretudo o 5 Estrelas, mas que mantém, embora em declínio, o Partido Democrático e a  Força Itália, com 19% e 14% votos respetivamente; e uma Liga, que já não tem Norte no nome, que se tornou nacional ao estilo de Marine Le Pen. A Liga tornou-se o partido hegemónico da direita, num processo que se vai acelerar daqui  a quatro ou cinco anos, quando Berlusconi, por razões biológicas, abandonar a política ativa. Estamos num momento importantíssimo de mudança de época. No domingo houve um terramoto político, não sabemos onde isto vai parar. Mas é visível que a Itália que começou a 4 de março vai ser completamente diferente.  

Não existe uma Itália com dois partidos, mas existe uma Itália dividida em duas: com o Norte e o Sul muito diferentes.

Esta é a grande questão. Se é certo que a questão meridional e as diferenças culturais, sempre existiram entre o norte e o sul da Península de Itália, realmente agora temos um país dividido em dois: no sul vota-se, com 40 a 50% dos votos, no 5 Estrelas, e no norte, com 35% a 40% dos sufrágios, na Liga. Mas a divisão não é só eleitoral. Esses partidos ganharam nas suas regiões com programas económicos radicalmente distintos e inconciliáveis.

Mas têm em comum serem contra a imigração e eurocéticos.

Sim, mas é preciso dizer que a política não se esgota aí. A Liga tem como projeto económico a defesa do pequeno empresariado, os comerciantes e os trabalhadores, e que defende? Menos impostos, mais facilidade para criar empresas, um Estado menos intervencionista, que facilite a vida das pequenas empresas. Sobretudo um discurso de fundo que diz: queremos trabalhar sem ser incomodados e ter emprego, e aí entra a narrativa contra os imigrantes que roubariam trabalho e ainda aumentariam os gastos sociais. O discurso do 5 Estrelas, que teve êxito no sul da Itália, é muito diferente: Rendimento Básico Incondicional e um assistencialismo do Estado. Não têm o mínimo denominador comum.  

Creio que há também uma mudança histórica na política destas regiões: a democracia-cristã tinha muitos votos no sul e o PCI tinha muitos votos no norte, nas regiões industriais e na Emília Romana. Agora parece que a direita ganha a norte e o 5 Estrelas a sul.

Há uma mudança. Mas é preciso ter em conta uma coisa: é certo que a democracia-cristã tinha uma parte importantíssima da sua votação no sul, mas também tinha na Lombardia, Véneto e em Trentino, regiões do norte que rapidamente passaram a ser feudos da Liga Norte e de Berlusconi.  Véneto era considerada a região branca, a cor era uma expressão da oposição aos vermelhos. Antigamente, até porque a democracia-cristã e  Berlusconi tinham muitos votos também a sul, havia sempre uma força política e um partido que conseguia atar as ligações entre norte e sul e isso agora parece que desapareceu. Agora falta um elemento federador. A Liga, apesar de ter tido um milhão de votos no sul, e eleito 23 deputados nessas regiões, quando há dois anos nem se apresentava, não o pode fazer. Conseguiu só 4,5 e 6% nessas regiões, onde o 5 Estrelas superou os 50%.

O outro dado relevante nos seus artigos é que a esquerda italiana desapareceu completamente. E ela não era só eleitoral, nos tempos do PCI, com mais de 30% dos votos, mas era social e tinha uma série de instituições fortes: como os sindicatos da CGIL e as associações e coletividades como a ARCI. Como se explica esse estertor?

É verdade. O Livres Iguais, uma dissidência social-democrata do PD, não tem mais de 3,5%, e a esquerda mais radical do Poder ao Povo, não passa de 1,1%, cerca de 400 mil votos, pouco mais do que obtiveram os fascistas da Casa Pound. Aqui há várias razões: por um lado, temos uma esquerda da Refundação Comunista que – na fase ascendente do movimento alter-mundialista, começado na cimeira de Génova 2001 [e no primeiro Fórum Social Europeu em Florença] soube inteligentemente dialogar com os movimentos sociais – depois da participação no governo Prodi, teve uma grande incapacidade de reatar os laços com os movimentos sociais. O que provocou uma derrota histórica em termos eleitorais: desde 2008 até estas eleições, a esquerda fora do PD não conseguiu entrar no parlamento, e agora só o consegue com 3,4% dos Livres e Iguais, o que não é nada. Depois da experiência governamental da Refundação Comunista, de 2006 a 2008, há também a incapacidade de criar um discurso no momento em que explodiu a crise. O que coincide com o aparecimento do Movimento 5 Estrelas que sabe captar os descontentes com o discurso da raiva, o discurso do vaffanculo [exatamente isso que parece]. Captam muitos eleitores da esquerda pós-comunista, e até movimentista, e, pouco a pouco, isso é visível nestas eleições, até votantes do que restava da esquerda social-democrata. E, por fim, há uma crise geral dos sindicatos em toda a Europa devido à mudança das condições de trabalho, precariedade e robotização, ao mesmo tempo que a intenção  de criar um bloco social italiano, com a mudança do PCI até ao PD, bateu na parede e o resultado foi tentar fazer, com 20 anos de atraso, a Terceira Via de Blair. 

Foram a grande velocidade muito mais para a direita que a maioria dos partidos social-democratas.

Absolutamente, e se juntarmos o neoliberalismo aceite pelo PD, sobretudo sob a liderança de Matteo Renzi, à incapacidade da esquerda pós-comunista de conseguir recuperar um discurso motivador que a ligasse às pessoas e aos movimentos; a debilidade generalizada dos sindicatos e, por último; o aparecimento de um movimento de indignados, enraivecidos e descontentes com o mundo, que é o movimento 5 Estrelas, entendem-se as razões que levaram uma esquerda sociologicamente tão importante a acabar isolada e atomizada. Outro dado interessante é o de onde é que os Livres e Iguais e o PD, que não é esquerda mas que tem gente de esquerda que vota nele historicamente, têm mais votos? Para além dos feudos da Toscana e da Emília Romana, é nos centros das grandes cidades e nas classes médias e muito instruídas que têm a maioria dos votantes. Se analisarmos as circunscrições do centro de Milão, um dos sítios mais ricos de Itália, quem ganhou aí foi o Partido Democrático e o segundo partido foi a Força Itália.

Os vencedores da globalização

Isso mesmo. E os derrotados a quem dão os votos? À Liga no norte e ao Movimento 5 Estrelas no sul.

Como se compreende este resultado, depois dos problemas que teve o 5 Estrelas a governar Roma ?

Teve muitos problemas. Mas isso só lhe retirou votos significativos em Roma. O 5 Estrelas está a governar em 45 cidades, as únicas grandes são Roma e Turim, e uma média, Livorno. Os únicos sítios em que perderam votos foi em Roma e um pouco em Turim. Nesta última até estão a governar bem, mas é uma cidade muito exigente. Em Roma foi um desastre, mas não foi muito diferente de desastres anteriores de outros partidos. Eles próprios já previam que fosse assim. No resto das cidades em que estavam no poder duplicaram ou triplicaram as votações. Conseguiram solidificar o seu êxito por duas razões principais: a incapacidade das outras forças políticas de criarem um discurso que chegue às pessoas; e conseguirem manter-se num discurso muito ambíguo para captar tanto os votos da direita, como à esquerda. Exemplos óbvios: o discurso do rendimento básico incondicional que agrada à esquerda e contra a imigração que agrada à direita. 

É possível haver um governo entre 5 Estrelas e Partido Democrático?

É a mais provável, mas é também muito difícil. É preciso que passem algumas semanas, porque é preciso algum tempo de reflexão, que Renzi se vá embora definitivamente e que o PD saiba o que quer fazer. Esta é a solução que gostaria o Presidente da República: ter um governo 5 Estrelas minoritário dependente do ‘responsável’ e europeísta Partido Democrático. Mas mesmo que isso seja possível, acaba por ser um presente envenenado: a Liga vai para a posição confortável de ficar a liderar a oposição num momento muito difícil. E toda a gente sabe que será um governo a prazo que provavelmente cairá nas próximas eleições europeias.