Como tende a acontecer com os espiões, especialmente os que estão no ativo e em ascensão, Gina Haspel tem grande porção da vida envolta numa coberta vaga de secretismo. Sabe-se, apesar de tudo, que entrou na agência de espionagem americana – a CIA – nos últimos anos da Guerra Fria, em 1985, e que passou o primeiro troço da sua carreira na clandestinidade, sob disfarce, em alguns dos pontos mais críticos da política externa dos Estados Unidos. Primeiro, na divisão da Europa Central, depois na Turquia e Ásia Menor. Liderou a delegação da CIA em Londres e Nova Iorque, conquistou a confiança de uma agência dominada por homens, defenderam-na democratas e republicanos, subiu na hierarquia e, no último ano, chegou ao cargo de vice-diretora. Esta semana, no jogo de cadeiras provocado pela demissão alucinante – mas não surpreendente – do secretário de Estado Rex Tillerson, Haspel ficou a um passo de se tornar a chefe da CIA. Basta-lhe a aprovação no Congresso para que se torne a primeira mulher na frente da vasta agência de espionagem. O degrau que lhe resta, porém, será doloroso. É provável que o suba, mas nada está garantido. O passado de Gina Haspel, afinal de contas, tem portas que ela e os Estados Unidos preferiam manter fechadas.
Haspel é uma das figuras centrais nas operações de tortura norte-americanas conduzidas nos anos que se seguiram ao 11 de Setembro, em prisões clandestinas, espalhadas por todo o mundo e designadas como Black Sites. Não se conhece ao certo a extensão do programa americano ou o grau de envolvimento de Haspel, que, em 2002, apenas um ano depois dos atentados em Nova Iorque, foi apontada a responsável pelo primeiro Black Site americano no estrangeiro: uma prisão confidencial na Tailândia conhecida em nome de código como Cat’s Eye. Por essa altura, a CIA desdobrava-se em operações frenéticas por todo o mundo, na busca de figuras chave da Al-Qaeda. Uma delas, Abu Zubaydah, foi capturada no Paquistão e, como suspeito estratega da Al-Qaeda que era, enviado para o Cat’s Eye, na Tailândia, onde Haspel supervisionou a sua violenta tortura. Os Estados Unidos pretendiam informações vitais sobre o funcionamento da organização terrorista e estavam convencidos de que Zubaydah as tinha. Os agentes sob o comando de Haspel fizeram a tortura do afogamento 83 vezes a Zubaydah num só mês, atiraram a sua cabeça contra as paredes da cadeia e a dada altura, segundo a escreve a revista New Yorker, o prisioneiro deu sinais de estar morto. Não estava, foi reanimado e a tortura prosseguiu até que a CIA concluiu que afinal o detido não possuía informações relevantes.
Zubaydah não representa contudo a extensão do envolvimento de Gina Haspel no vasto programa de tortura americano que Barack Obama revogou em 2009. Sabe-se de pelo menos um segundo detido na prisão Cat’s Eye, Abd al-Rahim al-Nashiri, que sofreu três vezes a tortura do afogamento e que do outro lado dos tubos que lhe injetavam água na garganta e estômago, simulando a sensação de afogamento, se encontrava novamente Haspel. «Bom trabalho! Gosto da maneira como te estás a babar, parece-me muito realista. Estou quase a acreditar», disse Haspel a um dos detidos que sofria a tortura do afogamento conhecida como waterboarding, segundo uma investigação publicada no início do ano passado pela ProPublica. «A tortura de pessoas detidas sob a custódia dos Estados Unidos é um dos mais negros capítulos da História americana», escreveu esta semana o senador republicano John McCain, o veterano da Guerra do Vietname que passou cinco anos e meio em cativeiro e sob tortura dos vietcongues. «O Senado deve escrutinar o envolvimento de Gina Haspel nesse programa miserável», sentenciou.
Provas destruídas
Haspel não sobreviveu ao escrutínio dos congressistas norte-americanos em 2013, por exemplo, ano em que o então diretor da CIA John Brennan – apontado por Barack Obama – a tentou promover ao cargo de líder das operações clandestinas. A senadora democrata Dianne Feinstein travou a nomeação, mas não o fez com base nas torturas conduzidas por Haspel. Feinstein ofereceu como justificação um outro capítulo inconveniente no percurso da agente americana. Em 2005, por ordens do seu superior, Jose Rodriguez, Haspel enviou um memorando ordenando a destruição das cassetes de vídeo que documentavam as torturas de waterboarding na prisão clandestina da Tailândia, apagando assim o rasto a dezenas de sessões violentas, cuja verdadeira magnitude pode ficar oculta por vários anos. Uma investigação interna exonerou Haspel e Rodriguez, mas o lastro da suspeita é difícil de enxaguar. A responsável, porém, tem o benefício de, ao longo dos anos que passaram desde a sua promoção rejeitada, ter conquistado mesmo os responsáveis democratas mais céticos. Até a própria Feinstein diz estar convencida de que Haspel tem sido uma ótima vice-diretora da CIA e pode fazer também um bom trabalho no topo da agência. A senadora democrata, contudo, tem as suas reservas, e já convocou uma reunião especial com Gina Haspel para esclarecer as suas últimas dúvidas: «Existe uma diferença entre o segundo posto e o lugar do topo», afirmou a congressista democrata ao New York Times.