Nicolas Sarkozy caminhou longamente a corda do funambulismo político. Reinventou-se, alterou as regras do jogo da reputação pública, descaracterizou o pudor presidencial, mudou o nome ao partido, alterou-lhe até a ideologia e, embora se mostrasse a tempos impressionante na sua corda, dela caiu, com toda a probabilidade para sempre, ao sair derrotado das primárias presidenciais de novembro de 2016. “Não tenho amarguras, não transporto tristeza e desejo o melhor para o meu país”, afirmou então, retirando-se pelas cortinas da vida política, mas deixando-se numa outra corda, menos visível mas também bamboleante, nas qual tenta equilibrar os casos jurídicos que o podem devolver a contragosto e em infâmia ao olhar público.
Esse regresso aconteceu em parte ontem, no momento em que Nicolas Sarkozy foi detido pelas autoridades francesas e transportado para um interrogatório que, no limite, se pode prolongar por 48 horas. Amanhã de manhã os procuradores franceses têm de ter uma ideia formada sobre se vão acusar, ou não, o antigo presidente francês no velho caso do dinheiro líbio que o pode ter enviado à margem da lei para o Eliseu.
Ao começo da noite de ontem, não existiam indicações do ex-presidente francês ou dos seus advogados que alterassem a posição que vem assumindo há anos sobre as suspeitas: são “grotescas”, segundo diz. “Não tem vergonha de me perguntar isso?”, lançou uma vez Sarkozy a um jornalista do canal público de televisão.
O “isso” é o alegado complô que tem epicentro no antigo ditador líbio Muammar Kadhafi e nas eleições francesas de 2007. Por esses anos, a Líbia lucrava com a mesma explosão nos preços do petróleo que enchia os cofres também a países como a Rússia e a Venezuela. E, como eles, Trípoli, há anos considerada um pária na política internacional no Ocidente, encontrava-se em expansão de influência. De acordo com antigos ministros do ditador líbio, um dos seus filhos (ver texto ao lado), outros políticos africanos e, mais caricatamente, um negociador de armas com nacionalidade francesa e libanesa, Nicolas Sarkozy estendeu bem aberta a mão ao ditador líbio e aceitou cerca de 50 milhões de euros em contribuições políticas ilegais, alegadamente enviados em malas.
Os procuradores franceses investigam desde 2013 estas alegações, mas só ontem detiveram o ex-presidente francês para interrogatório. Sarkozy pode abandonar a esquadra amanhã de manhã ileso, mas o processo parece ter galgado terreno nas últimas semanas. Em janeiro, o empresário francês Alexandre Djouhri, o homem que os investigadores franceses suspeitam ter sido o facilitador dos pagamentos de Kadhafi, foi detido no Reino Unido e aguarda extradição para França. Comprovando-se os pagamentos líbios, mancha-se indelevelmente a presidência de Sarkozy e a intervenção internacional da NATO na Líbia, uma decisão militar cujo desastre, de acordo com o presidente americano Barack Obama, se deveu à indisponibilidade europeia de garantir a ordem do pós-guerra.
O interrogatório, para já, conduz-se no maior segredo. Sarkozy dificilmente será julgado por uma intervenção militar desastrosa, mas pode ser acusado de violar as leis de financiamento político ao aceitar uma contribuição de quase o dobro do teto máximo permitido por lei que, ainda por cima, numa nova ilegalidade, viria de um governo estrangeiro. Mas o grande espetro em torno do ex-presidente francês – que também é suspeito de financiamento ilegal na campanha de 2012 – está assente naquele mês de dezembro de 2007, poucos meses depois de ter conquistado uma eleição apertada contra Ségolène Royal, no qual recebeu Kadhafi em Paris. Grande parte dos líderes internacionais ter-se-ia recusado a apertar a mão do ditador líbio, mas Sarkozy permitiu que Kadhafi montasse uma enorme tenda beduína no pátio do Hotel de Marigny, residência oficial para chefes de Estado de visita à França. Na altura, porém, as suspeitas eram mudas. Surgiram apenas quando, anos depois, Sarkozy se tornou um dos principais defensores de uma intervenção armada na Líbia que acabou por provocar o homicídio de Kadhafi e um descalabro do qual o país ainda não recobrou. “Financiámos a sua campanha e temos provas disso”, disse no ano da intervenção o filho de Kadhafi, Saif al-Islam. “Exigimos que este palhaço devolva o dinheiro ao povo líbio.”