No Brasil morrem 60 mil pessoas por ano vítimas de violência. A insegurança é uma das principais preocupações da classe média das grandes cidades. O Presidente Michel Temer não goza de muita popularidade. A intervenção militar no Rio de Janeiro, numa altura que a legitimidade de Temer está muito agastada devido às tentativas de liberalizar o mercado de trabalho e de fazer numerosos cortes nos gastos sociais, é uma tentativa de dar um balão de oxigénio ao seu mandato. Eventualmente, Temer pode até pensar em lançar uma candidatura presidencial, que é praticamente impossível, não só devido ao compromisso inicial que fez com os seus apoiantes, de não concorrer a eleições, mas sobretudo devido às suas baixas taxas de popularidade. Apenas menos de 6% dos eleitores brasileiros consideram a hipótese de votar nele.
O assassinato da vereadora Marielle Franco na noite de 14 de março, depois de criticar o 41.º Batalhão da Polícia Militar responsável por 567 mortes desde 2011, pode ser o toque de finados dessa estratégia que já não estava a correr nada bem. No barómetro Ipsos/Estadão de março, já depois do início da intervenção militar no Rio de Janeiro, a taxa de rejeição de Michel Temer subiu para 94%, sendo que só 4% dos inquiridos aprovam a sua governação.
As ondas depois do assassinato da vereadora acabam por condicionar até a campanha da extrema-direita, segundo declara ao site Carta Capital o cientista político Glauco Peres, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. O silêncio de Bolsonaro, defensor da tortura na ditadura e entusiasta da repressão policial, diz claramente qual é sua estratégia. «Se tivesse superado as diferenças políticas e manifestado o seu repúdio ao ocorrido, provavelmente descontentaria parte daqueles que o apoiam hoje». «No entanto, preferiu voltar-se para o seu eleitor, mas sem manifestar-se, evitando, assim, que os moderados que estão próximos se distanciem», afirma.
Até mesmo as tentativas de denegrir a vereadora assassinada, espalhando boatos de que estaria ligada ao tráfico de drogas, devia a sua eleição ao Comando Vermelho e que teria um filho de um traficante, foram prontamente desmontadas e os seus autores políticos e judiciais estão descredibilizados. Marielle Franco teve a grande maioria dos seus votos, que a elegeram como a quinta vereadora mais votada no Rio de Janeiro, na zona sul da cidade e não nas favelas. Por exemplo, na Rocinha teve apenas 22 votos, no Leblon teve 1027; no complexo de favelas da Maré não passou os 50 votos, poucos em comparação com os 2742 votos que obteve em Copacabana.
A falsidade dos boatos não coibiu uma juíza desembargadora de os propagar, levando o partido da vereadora assassinada, o PSOL, a apresentar uma denúncia ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) contra a desembargadora Marília Castro Neves, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Após esta ter acusado, nas redes sociais, a vereadora do PSOL Marielle Franco de estar «engajada com bandidos» e ter sido «eleita pelo Comando Vermelho».
A juíza, que se mantém em funções, já tinha defendido o fuzilamento de um deputado homossexual do PSOL. Numa outra publicação no Facebook, a desembargadora escreveu que era necessário um «paredão profilático» para o deputado Jean Wyllys e disse que o Parlamentar não valeria «a bala que o mate e o pano que limpe a lambança». Fez ainda uma piada homofóbica ao responder a um comentário no FB que dizia: «Quanto ao paredão, de costas, ele adoraria», ao que a desembargadora acrescentou: «Tenho dúvidas… o projétil é fininho».
Recorde no Twitter
Para se perceber o impacto do assassinato de Marielle Franco, basta recorrer às redes sociais. Nas 42 horas seguintes às balas que mataram a vereadora, foram escritos 3573 milhões de tuítes, que mobilizaram 400 mil pessoas no Twitter de 54 países e que se expressaram em 34 idiomas diferentes.
A contabilidade é da responsabilidade Laboratório de Estudos da Internet e Cultura, da Universidade Federal do Espírito Santo, conhecido por Labic. «Nunca vi nada igual», admira-se Fabio Malini, coordenador do Labic, em declarações à revista piauí. O centro de investigação monitoriza a internet desde 2012.
Durante o impeachment de Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, em 2016, o Labic fez a mesma análise. Os investigadores contaram 3357 milhões de tuítes publicados sobre o tema ao longo de 72 horas. O impeachment estabeleceu um recorde em acontecimentos políticos, recorde ultrapassado pela reação ao assassinato de Marielle. Foram 200 mil tuítes a mais e em muito menos tempo.
Os investigadores puderam também analisar os utilizadores que conseguiram expressar melhor a opinião e a indignação sentida nas redes sociais. Com pouco mais de mil seguidores, o perfil @badgcat foi responsável pelo tuíte mais citado após o assassinato da vereadora do PSOL. Dizia: «Marielle morreu dps de denunciar abuso dos militares e a galera tá falando ‘morreu pelas mãos bandidos que ela defende’. Acho que ela morreu pelas mãos dos bandidos que você defende, amigo». Mais de 33 mil retuítes transformaram sua dona no segundo nó mais importante da rede formada a partir da tragédia, atrás somente pelo da própria conta de Marielle.
A autora do tuíte, a @badgcat, tem 17 anos e é negra e ativista. Mora em Queimados, na Baixada Fluminense, a mais de 50 quilómetros do local onde a vereadora do PSOL foi assassinada. Milena Martins contou à piauí que não pôde ir ao protesto contra a morte de Marielle. Não teve dinheiro para os transportes. Mia, como é chamada, toma conta da avó, de 95 anos, cega e surda.
Ela reclama que, depois de eleita, mesmo estando cada vez mais ativa como vereadora, Marielle havia desaparecido das notícias. «A comunicação social está muito ocupada em nos fazer acreditar que política é só Bolsonaro e Lula. Não nos deixam conhecer as Marielles».
Informada pela piauí de que seu tuíte era recordista de compartilhamentos, @badgcat respondeu, por uma mensagem no seu Instagram: «Fico lisonjeada por poder dar voz à revolta».