Acabaram às 17:30 do dia 21 de março os dois dias de interrogatório da Justiça francesa ao ex-Presidente Nicolas Sarkozy. Os juízes de instrução encarregues do inquérito deslocaram-se aos escritórios do gabinete anti-corrupção da Polícia Judiciária francesa, situados em Nanterre, para inquirir o antigo Presidente francês por suspeitas de corrupção passiva, financiamento ilícito de campanha eleitoral e desvio de fundos públicos líbios.
Trata-se de um acontecimento judicial sem precedentes na história da Justiça francesa, no entanto, tão apimentada por casos de corrupção de antigos dignitários, a investigação formal de um antigo Presidente da República por ter sido financiado por uma ditadura estrangeira, o regime de Mouammar Kadhafi.
Nicolas Sarkozy teve de pagar fiança para sair em liberdade na noite de quarta-feira, ao fim desses dois dias seguidos de interrogatório sobre os 50 milhões de euros que o antigo ditador líbio Muammar Kadhafi alegadamente lhe pagou para financiar a sua campanha de 2007.
A Justiça francesa colocou-o sob ‘investigação formal’, uma figura que sugere que há provas bastantes para em breve avançar para uma acusação, embora esse passo não tenha ainda sido tomado. O ex-Presidente não prestou declarações à saída do tribunal, mas reafirmou em comunicado que está inocente e que vai limpar o nome. «Ao longo da minha detenção, procurei com toda a força demonstrar que não existem as provas sérias necessárias para acusar alguém», disse.
‘Estou a ser acusado sem provas’, diz Sarkhozy
De acordo com o jornal Figaro, que consultou as declarações de Sarkozy feitas a um juiz, o Presidente afirmou que a sua «vida está um inferno» e que os investigadores apenas estão na posse de alegações provenientes de antigos membros do regime líbio procurando vingança pela invasão da NATO em 2011.
«Estou a ser acusado sem provas», afirmou Sarkozy ao tribunal, admitindo, contudo, que as alegações que enfrenta «são séria».
O inquérito judicial sobre o financimento líbio de que é alvo directo Nicolas Sarkozy, e vários dos seus colaboradores directos, é conduzido, desde 2013, pelos juízes Serge Tournaire, Aude Buressi e Clément Herbo. O caso foi revelado em 2011 pelo site de informação francês Mediaparte.
O antigo ministro do Interior Brice Hortefeux, homem de confiança de Nicolas Sarkozy depois de 30 anos, foi também interrogado pelos juízes no dia 20 de março. Depois de ser ouvido e libertado sob o estatuto de ‘suspeito livre’, colocou um post na sua conta de Twitter: «Testemunhando durante uma audição enquanto suspeito livre, dei um testemunho que deve permitir acabar com uma sucessão de erros e mentiras».
A desconfiança de Chirac
Apesar dessa convicção nas redes sociais, é pouco provável que o caso fique por aqui. Há muito que um conjunto de factos e declarações apontava para o financiamento líbio da primeira campanha presidencial de Nicolas Sarkozy.
Por estranho que pareça, foi na Arábia Saudita que nasceu, segundo o Mediaparte, este caso do dinheiro líbio. Na sua origem está o falhanço de um enorme negócio de armamento entre a França e a monarquia whhabita, em 2005, em que o então ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, tinha investido muito dos seus esforços.
O negócio foi sabotado pela equipa do Presidente Jacques Chirac, que desconfiava que, dada a presença de um intermediário amigo de Sarkozy, Ziad Takieddine, ele escondia luvas para financiar a anunciada campanha presidencial do então ministro do Interior.
Um golpe que obriga Takieddine a procurar uma outra fonte de financiamento para Sarkozy. Num tempo recorde, consegue estabelecer contactos com o regime de Kadhafi, vendendo os serviços de um possível futuro Presidente francês na pacificação da relação entre a Líbia e o Ocidente e no enterrar de alguns dossiês que implicavam os líbios em atentados terroristas na Europa.
Em setembro de 2005, é organizada uma visita secreta do chefe de gabinete de Sarkozy, Claude Guéant, a Tripoli. A visita de Guéant não passaria de um aperitivo. No dia 6 de outrubro de 2005, Nicolas Sarkozy desloca-se, ele mesmo, a Tripoli. O ponto culminante da sua visita será um encontro privado com o líder líbio, Mouammar Kadhafi. A reunião terá lugar na caserna de Bab Al-Aziza, quartel general do dirigente líbio. O início da reunião terá a presença de alguns colaboradores de Kadhafi e de Sarkozy. Posteriormente, haverá uma parte em que os dois falarão a sós, apenas com a companhia de dois tradutores. Em seguida, o embaixador francês na Líbia, Jean-Luc Sibiude, tenta tirar nabos da púcara à tradutora francesa, que lhe diz estar obrigada a segredo profissional.
A 10 de dezembro de 2006, os líbios assinalam esse apoio, num documento burocrático e secreto que é suposto nunca ver a luz do dia, em que afirmam que na sequência de negociações entre as duas partes, implicando o amigo de Sarkozy, Ziad Takieddine, o chefe dos serviços secretos do ditador líbio, Abdallah Senoussi, e o futuro ministro da Integração e Imigração nos governos sob a presidência de Sarkozy, Brice Hortefeux, ficou estabelecido que a Líbia desse 50 milhões de euros para financiar a campanha presidencial de Nicolas Sarkozy. Esse documento é assinado pelo chefe dos serviços secretos líbios do exterior, Moussa Koussa, e é endereçado a Béchir Saleh, chefe de gabinete de Kadhafi e responsável pelo fundo soberano do país, Libyan African Portfolio. Será encarregue do desenvolvimento da operação o primeiro-ministro em funções, Baghdadi al-Mahmoudi.
Passados muitos anos destes factos, Sarkozy dificilmente será julgado por uma intervenção militar desastrosa feita aparentemente para liquidar provas que deviam parte da eleição ao regime líbio, mas pode ser acusado de violar as leis de financiamento político e aceitar uma contribuição de um Governo estrangeiro. Em dezembro de 2007, poucos meses depois de ter conquistado uma eleição apertada contra Ségolène Royal, recebeu Kadhafi em Paris.
‘Devolva o dinheiro’
Grande parte dos líderes internacionais ter-se-ia recusado a apertar a mão do ditador líbio, mas Sarkozy permitiu que Kadhafi montasse uma enorme tenda beduína no pátio do Hotel de Marigny, residência oficial para chefes de Estado de visita à França. Na altura, porém, as suspeitas eram mudas. Surgiram apenas quando, anos depois, Sarkozy se tornou um dos principais defensores de uma intervenção armada na Líbia que acabou por provocar o homicídio de Kadhafi e um descalabro do qual o país ainda não recobrou. «Financiámos a sua campanha e temos provas disso», disse, no ano da intervenção, o filho de Kadhafi, Saif al-Islam, acrescentando, «exigimos que este palhaço devolva o dinheiro ao povo líbio».