Depois do Reino Unido, a Islândia. O governo islandês anunciou a suspensão dos contactos ao mais alto nível com a Rússia, incluindo um boicote diplomático ao Mundial de futebol, que se jogará entre 14 de junho e 15 de julho em território russo. O motivo é o envenenamento do ex-espião russo Sergei Skripal e da sua filha em Salisbury, no Reino Unido, a 4 de março – que o executivo britânico garante ter sido ordenado pelo governo liderado por Vladimir Putin, embora este o negue –, descrito pela Islândia como “uma grave violação das leis internacionais, que ameaça a segurança e a paz na Europa”.
“Entre as medidas tomadas pela Islândia está o adiamento temporal do diálogo bilateral ao mais alto nível com as autoridades russas. Em consequência, os líderes islandeses não assistirão ao Mundial de futebol, na Rússia”, assinalou, em comunicado, o ministério das Relações Exteriores daquele país nórdico. O governo islandês, de resto, pediu “respostas claras e credíveis” a Moscovo: “Até agora, a resposta da Rússia tem sido gravemente deficiente. Tem de fornecer explicações críveis sobre como um agente nervoso originalmente produzido em laboratórios soviéticos passou a ser usado para atacar civis no Reino Unido.” Esta segunda-feira, Theresa May, primeira-ministra do Reino Unido, realçou que mais de 130 pessoas podem ter sido expostas ao agente nervoso que terá sido usado para envenenar Skripal e a sua filha – ambos ainda vivos, mas em estado crítico.
O boicote de Reiquejavique surge depois de 16 países da União Europeia (UE) e mais nove outras nações, entre as quais os Estados Unidos, terem anunciado a expulsão de 140 diplomatas russos dos seus territórios – a maior expulsão ocidental de diplomatas russos desde o auge da Guerra Fria. A própria NATO, de resto, anunciou já a expulsão de sete diplomatas russos, tendo ainda rejeitado pedidos de acreditação de outros três. “Todos os aliados e parceiros mais próximos da Islândia decidiram adotar medidas contra a Rússia como resposta ao ataque de Salisbury”, pode ler-se no comunicado da Islândia, que já havia adotado as sanções impostas pela UE contra a Rússia após a anexação da Crimeia.
Russos sem preocupações No último dia 14, Londres havia anunciado a expulsão de 23 diplomatas russos do território britânico e o congelamento das relações bilaterais, garantindo a ausência de qualquer representante da família real ou do executivo no Mundial; em resposta, Moscovo expulsou 23 diplomatas britânicos e suspendeu a atividade do British Council na Rússia.
Agora, além da Islândia, também a Suécia, a Dinamarca, a Polónia e a Austrália ponderam um boicote diplomático ao Mundial. Por agora, os russos não se mostram minimamente preocupados. “Só podemos sentir pena dos diplomatas islandeses. De certeza que iriam adorar estar no estádio a apoiar a sua equipa. É triste ver a Islândia a servir de forro para uma guerra política e de informação contra a Rússia”, disse o chefe parlamentar do comité desportivo russo, Mikhail Degtyarev. Há poucos dias, Alexei Sorokin, chefe do comité de organização do Mundial, já havia salientado que a ausência diplomática britânica “não terá impacto na qualidade do torneio”.
Portugal, para já, não tem prevista qualquer medida semelhante. Como se pode ler em comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros, o nosso país “tomou boa nota” da decisão dos 16 países da UE e defende que a “concertação é o instrumento mais eficaz para responder à gravidade da situação”, mas não vai, pelo menos por agora, expulsar diplomatas russos ou boicotar a presença diplomática lusa no Campeonato do Mundo.
Boicotes e mais boicotes Os russos, já se percebeu, ainda não manifestam preocupação em relação às posições já assumidas por vários países – até porque, para já, parece completamente impossível que algum país vá, efetivamente, boicotar o Mundial e desistir de participar na prova, dadas até as sanções que tal acarreta: proibição de presença no próximo (2022) e multa pecuniária de valor substancial. Boris Johnson, ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, assumiu isso mesmo em relação à seleção inglesa – “Seria errado castigar os adeptos ou a equipa” –, mas causou polémica ao concordar com Ian Curtis, deputado trabalhista, que comparou o Mundial do próximo verão aos Jogos Olímpicos de 1936, decorridos em plena Alemanha nazi.
“Putin vai usar o Mundial do mesmo modo que Hitler usou os Jogos Olímpicos de 1936 e fazer da prova um exercício de relações públicas para esconder os atentados aos direitos humanos pelos quais é responsável”, disse Curtis, com Boris Johnson a anuir: “É uma comparação acertada.”
Em 1936, os Jogos Olímpicos surgiram como a oportunidade que Hitler precisava para difundir a larga escala as suas campanhas de propaganda. De Jesse Owens, multi-medalhado atleta norte-americano de origem africana, chegou a dizer: “É gente cujos antecedentes são provenientes da selva, gente primitiva. Os corpos deles são mais fortes que os dos brancos civilizados. Nem sequer deviam poder participar nos Jogos Olímpicos.”
As edições de 1976 e 1980 viriam a marcar os dois primeiros grandes boicotes na história da prova – embora em 1956, em Melbourne, Egito, Iraque e Líbano já tivessem falhado a presença em protesto contra a invasão israelita da Península do Sinai e Holanda, Espanha e Suíça devido à invasão soviética da Hungria. Em 1976 (Montréal, Canadá), tudo se deveu ao Apartheid, regime de segregação racial que vigorou na África do Sul entre 1948 e 1994. Vinte e seis países africanos optaram por não participar nos Jogos, em protesto pela participação da Nova Zelândia, cuja seleção de râguebi havia feito uma digressão ao país sul-africano meses antes.
Em 1980, em pleno apogeu da Guerra Fria, 61 países não quiseram participar nos Jogos de Moscovo, num boicote (o maior de sempre) liderado pelos Estados Unidos e motivado pela invasão soviética ao Afeganistão no ano anterior – curiosamente, o Afeganistão… marcou presença no evento. Quatro anos depois, os soviéticos (juntamente com outros 14 países) retaliaram e falharam os Jogos de Los Angeles, alegando falta de segurança para os seus atletas.
No que respeita a Mundiais de futebol, boicotes foram prática comum nas primeiras três edições e em 1966, no ano da graça de Eusébio e restantes Magriços, quando os 15 países africanos então alistados na FIFA decidiram não participar sequer na qualificação para a prova, pois na altura o continente não tinha nenhuma vaga garantida automaticamente – hoje tem cinco. Em 1930, vários países europeus ficaram de fora pelo facto de a competição se disputar no Uruguai, sendo na altura imensas as dificuldades para viajar até à América do Sul. Nas duas edições seguintes, realizadas em Itália e França, os sul-americanos retaliaram – só o Brasil participou em ambas.