Manel Cruz, o primeiro incendiário do álbum quando enviou música e letra de “Quando Se Ama Loucamente”, é convidado do concerto, tal como o produtor Pedro Gonçalves (Dead Combo), repetente na cadeira após o bem sucedido “Romances” de 2015. Os dois juntam-se em palco pela primeira vez, com e sem Aldina Duarte. Em Nova Orleães, a morte é celebrada em nome da vida com música nas ruas. No CCB, a “filha adotiva do fado” faz o elogio do amor e assevera que…
…este luto está feito. Já estava quando disco o disco saiu. Aliás, não podia haver melhor forma de celebrar o luto. A história é um amor feliz que não vale pelo seu fim. Vale pelo seu todo, ao contrário do que acontece na maior parte das vezes em que uma história de amor acaba tragicamente. Aliás, acaba sempre mal porque não há ruturas boas. Com a dor, as pessoas apagam de tal forma o que foi vivido e às vezes perde-se…Mas é mentira, porque valeu a pena. A história foi transformadora, valeu a pena e aquele sofrimento faz parte. Em nome de todo o crescimento e descoberta que foi o amor. Agora, para isso é preciso maturidade. Se alguém me dissesse isto aos vinte anos, diria que estavam todos doidos. Era incapaz de fazer esta reflexão e análise sobre uma história que me tivesse feito sofrer. Aqui não. Também acho que esta história de amor não acontece muitas vezes. A mim, aconteceu-me aos 40 e tal anos. Tive sorte.
Assusta-a não voltar a viver o amor?
Acho que não se ama mais do que uma ou duas vezes na vida. Não me assusta, o que me assusta é nunca ter passado por isso. Só nascemos e morremos uma vez. A quantidade nem sempre é a a característica mais importante na nossa natureza. A paixão é repetível, porque é da sua natureza durar menos. E ainda bem, senão morríamos. É efémera por natureza mas é essencial para arrancar com e desbravar novos caminhos. Essa natureza eu tenho-a: estou sempre apaixonada por alguma coisa. Pela música, por um escritor, um pintor, uma escultora, pelas minhas gatas…Tenho uma relação inicial apaixonada com tudo. Até com os meus amigos. O amor perdura e incondicionalmente transforma. Involuntariamente. O tempo passa e estruturalmente uma pessoa muda. Só amei duas vezes na vida. A primeira foi um amor infeliz e igualmente importante. Parte da minha vida nasceu desse grande amor. Temos a sorte de ser grandes amigos. Não é o caso deste em que não temos como ser amigos mas foi bom saber que há amores felizes. E, ainda por cima, não há nenhuma parte má. Acabou antes disso. O amor dá um sofrimento paralisante que a dor não dá porque se passa de inteiro para amputado. Falta um membro. Mas se eu voltar a amar ou se só me apaixonar, já me vou apaixonar com isto. E aí já não falta o outro porque ele passou a fazer parte de ti.
O fantasma não fica de vigia?
Acho que não porque os fantasmas só resistem se não houver luto. Quando se faz o luto, passa-se conscientemente pela dor. É um caminho que se faz na escuridão com consciência. Os fantasmas não gostam da consciência. Nem da luz.
Para conhecer o amor, é necessário viver para o compreender?
Sim, e a nível artístico não se pode saber antes de saber. Nem saber antes de aprender ou viver. Então no fado, nota-se muito. Quando se diz que o auge da Amália foi o “Com Que Voz”, ela tinha quase 50 anos. Quando comecei a ouvir cantar a Maria da Fé, aos 50 anos, era uma coisa que nem sei se definir. Porque é uma música muito orgânica e autêntica. Se não é interiorizada nem fluir na corrente sanguínea, nota-se. Mas também é comovente perceber, em pessoas novas, que falta essa maturidade mas não se desiste. Se o caminho não for feito, é impossível chegar lá. E mais do que paixão, é preciso uma grande humildade e amor pelo que se está a fazer. Esse é o lado que me comove. Humildemente, aceitar limitações e tentar perceber o que fazer com elas.
Os fadistas são maratonistas como os escritores, enquanto os artistas pop são sprinters?
Exato! A vida de um fadista pode ser toda. É uma arte que envelhece bem. Para um artista pop é mais difícil, porque a música é mais descartável. É uma boa comparação.
Quais são as cinzas do luto no “Quando se Ama Loucamente”?
A maior surpresa é cantar factos. Só tinha cantado situações a que sou sensível ou reconheço, mas factos não. Sei muito bem para quem é a pessoa que estou a falar. Que objetos são aqueles do cenário. E quem sou eu, apesar de ter auto-ficcionado. Há ali coisas que ponho na boca do outro e são minhas. E o inverso. Alterei a cronologia e os cenários dos acontecimentos. É aí que entra a Maria Gabriela Llansol. Achei interessante vestir de outra maneira o espaço.
Encontrou paralelo entre as duas narrativas?
Sim, queria trabalhar as minhas letras com a subtileza do texto. A subtileza encanta-me porque o fado per se já é muito declarado. Queria trabalhar as minhas letras com a delicadeza e a luz que a a Maria Gabriela Llansol tem sempre. Mesmo quando a luz é obscura. Um dos livros que me acompanhou foi o do luto do companheiro de vida, o Augusto. E é impressionante porque quando ela está na escuridão, ela não está na escuridão. Está em contraluz, o que é bem diferente. Como não sei o que é estar sempre na luz, se quero escrever sobre um amor intemporal, feliz, à semelhança dos contos de fadas anteriores ao branqueamento do Walt Disney, em que é tudo feliz menos o final, tenho a rede desta escritora que me foi apresentada pelo meu companheiro. Depois, como só conheci a Maria Gabriela Llansol há três anos, ainda estou a descobri-la. Reuniram-se as condições para arriscar escrever um disco pela primeira vez e comprometer-me com a escrita. Sempre escrevi para várias pessoas, para mim até menos do que para os outros, mas desta vez assumi um compromisso. E quero ver se não perco este embalo. E vou passar a escudar-me com os escritores que me acompanham mesmo que não seja um tributo declarado, como agora. Este método ajuda-me a comprometer-me de forma construtiva com a escrita, porque até agora o meu compromisso era com a interpretação. A escrita flui ou não. Escrevi este disco numa semana.
Foi catártico?
Foi, é verdade. Nunca fiz nada na vida assim. Já tinha escolhido melodias e definido critérios. Estas melodias são pouco cantadas. Pertencem a uma memória cantiga que as pessoas já nem reconhecem. E depois escrevi as letras à moda antiga com o cuidado de ter a métrica rigorosamente certa com a música. Foi um bom casamento e isso para interpretar facilita. Não precisei de me preocupar com o encaixe. Com a dor, cria-se. Aliás, está na palavra. Cria-dor. A dor integra-se. Faz parte de nós. A consciência da dor pode ser um bom equilíbrio. O sofrimento é a lama.
Além do nome, impôs limites para a privacidade?
A questão põe-se sobretudo nas entrevistas. A arte defende-se por si mesma. Ali, tudo é íntimo e muito é privado. Ali, o que eu quero falar é de intimidade. A privacidade é de cada um. Quando estamos a ler alguma coisa, ainda por cima autobiográfica, as pessoas identificam-se ou não. Eu não. Não tenho que partilhar a minha privacidade mas está no que escrevi e no que canto. Mas não está no que falo. Trazer a intimidade para o espaço público até pode engrandecê-lo. É para isso que a arte serve. A privacidade não serve para nada. Desvirtua as relações privadas.
Essa questão é sensível no nosso tempo.
Pois, por causa das redes sociais. Tudo se expõe. Eu não lido com isso. Mas há uma coisa de que eu gosto. Posso fazer o que quiser e, se não quiser fazer, não faço. Distinguir o privado do público é dos atos mais inteligentes da humanidade. Chama-se civilização e eu gosto de pertencer a esta espécie. O meu público não pode pensar que é meu amigo, porque a amizade é outra coisa. Quando eles estiverem doentes, eu não vou estar lá enquanto por uma amiga vou estar. Então para que é que vou partilhar com anónimos que estou no hospital? Porque as pessoas gostam, dá mais seguidores e concertos. Pois dou menos concertos, durmo melhor e não me queixo (ri-se).