Raquel Banha tem 21 anos e mobilidade condicionada. A música é, como descreve ao i, uma das suas paixões, e quando soube que uma das bandas que aprecia vinha a Portugal para atuar no Campo Pequeno, apressou-se a comprar bilhetes. E aí começou uma luta contra a discriminação que dura desde outubro.
“Fui encaminhada para os lugares mais caros [nos camarotes, 55 euros], por serem os únicos acessíveis a pessoas com mobilidade condicionada”, conta ao i. Indignada, partilhou a sua história na sua página de Facebook e a associação Acesso Cultura quis ajudá-la.
A associação entrou então em contacto com a Praça do Campo Pequeno, que esclareceu que “tinha havido um erro e que, afinal, havia lugares em camarotes ao preço da plateia [45 euros]”. Mas aí surgiu outro problema: é que Raquel depende 24 horas por dia de uma assistente pessoal e não pode ir ao concerto sem ela. O Campo Pequeno explicou à Acesso Cultura que “a decisão de não obrigar à compra de um segundo bilhete para o acompanhante cabia à Everything is New (EIN)”, a promotora do espetáculo.
A associação escreveu depois à promotora, sublinhando a necessidade de Raquel estar sempre acompanhada, mas até hoje não obteve resposta. Ao i, a EIN sublinha apenas que o erro relativo ao preço dos bilhetes se deveu, como um email da Ticket Line encaminhado ao i pela promotora faz saber, “a uma falha na comunicação entre a Ticket Line e o Campo Pequeno, falha a que a EIN é completamente alheia”. Quanto à questão do acompanhamento por um assistente pessoal, a promotora explica que “a política da EIN é estabelecer um preço especial para as pessoas com mobilidade condicionada, extensível ao acompanhante/assistente”, destacando a sua atuação não discriminatória: “A EIN foi o primeiro produtor a praticar preços mais acessíveis para zonas de mobilidade condicionada aplicáveis ao espetador com mobilidade condicionada e respetivo acompanhante, sem deixar de vender bilhetes para outras zonas da sala, desde que os respetivos acessos estejam em conformidade com as exigências da mobilidade condicionada”.
Falha na lei
É certo que não existe legislação, relativa especificamente às salas de espetáculo, que se debruce sobre os assistentes pessoais, mas o decreto-lei que institui o Modelo de Apoio à Vida Independente (MAVI) – programa nacional que promete independência familiar e institucional às pessoas com deficiência através do apoio de assistentes pessoais –, publicado em outubro, deixa claro: “Todas as entidades públicas e privadas devem permitir que a pessoa que beneficia da assistência pessoal se faça acompanhar do seu ou da sua assistente pessoal, assegurando o respetivo acesso e permanência junto dela.”
“Não se quer privilégios ou estatutos diferentes, mas sim que se assegure a igualdade de oportunidades a todos os cidadãos”, diz Raquel, que questiona porque tem de ser obrigada a pagar um segundo bilhete quando “não existe a opção” de usufruir da experiência sozinha. “Desde há uns anos que toda a gente já sabe que os cães-guia/de assistência podem entrar em qualquer sítio a acompanhar o dono. Aqui não estamos a falar de cães, mas sim de assistentes humanos. Se eu tivesse um cão, não pagaria nada e ele teria o direito de entrar… Mas como essa ajuda não é suficiente e preciso de algo mais eficaz, que neste caso é a ajuda de um assistente pessoal humano, já tenho de pagar. Será que um cão de assistência tem mais direitos do que um assistente pessoal?”, lança Raquel. Quanto a isto, a EIN justifica que “os cães-guia estão abrangidos por legislação específica que a EIN cumpre escrupulosamente”.
Boas práticas
A Acesso Cultura, por sua vez, fez chegar um comunicado ao i a expor o caso. “Procurámos sensibilizar a EIN. Informámos das necessidades específicas das pessoas com deficiência e da sua dependência, em muitos casos, de assistentes pessoais. Informámos ainda das boas práticas seguidas pelas instituições culturais nesta área, também em Portugal, e que preveem um desconto de 50% para as pessoas com deficiência, extensível ao acompanhante; em alternativa, a compra de um bilhete no valor normal, possibilitando a entrada gratuita ao acompanhante. Um telefonema e três emails depois continuamos sem qualquer resposta do lado da promotora do concerto”, lê-se na nota, assinada pela diretora executiva, Maria Vlachou.
As “boas práticas” referidas, nota Raquel Banha ao i, são seguidas noutros espaços culturais. “Já me aconteceu no Jardim Zoológico e no Oceanário, por exemplo”, conta. “Em teatro, por exemplo, já existe mais esta prática de oferecer o segundo bilhete. Ainda no outro dia, no São Luís, aconteceu isso! Foram impecáveis”, continua. “Passa pelo bom senso”, defende Raquel, mestranda em Marketing Digital.
A Acesso Cultura apresentou uma queixa à ASAE e contactou a Inspeção-Geral para as Atividades Culturais (IGAC) sobre a impossibilidade de haver lugares para pessoas com mobilidade condicionada na plateia do Campo Pequeno, mas a IGAC não respondeu. O i tentou saber, junto da ASAE, o estado do processo e se a entidade já recebeu outras queixas semelhantes, mas não obteve resposta. Contactámos também a IGAC à procura de esclarecimentos, mas nada foi avançado.