Vamos contar uma história que começa há muito tempo – podemos recuar até à altura em que o homem foi domando a paisagem, essencialmente pela força dos braços – na zona conhecida por Pinhal Interior. Para abreviar caminho, saltemos para o virar do milénio, quando, depois de anos infindáveis de trabalho do campo e de estreita convivência do homem com a natureza, as luzinhas das aldeias estavam prestes a extinguir–se – porventura, para sempre.
Este caminho do esquecimento e a cova profunda da demografia é história conhecida de cor e salteado no interior do país. E as 27 Aldeias de Xisto do Pinhal Interior são um dos melhores exemplos de reversão de uma realidade que se aproximava a passos largos. Uma realidade sem luzes, sem gente, sem memórias velhas e novas – sem vida nas aldeias. Depois de passar por importantes eventos de design e turismo na Alemanha, França, Inglaterra e Espanha, chegou agora a Lisboa a exposição que capturou a essência deste retrato que traçámos, juntamente com algumas respostas para o futuro das Aldeias de Xisto (ADX): “Agricultura Lusitana – 2015-18”. A exposição, que se instalou no Museu de Arte Popular, resulta de um casamento feliz – mas trabalhoso – que uniu a população remanescente, novos habitantes e escolas superiores de design de todo o país em torno das ADX. Muitas cabeças a pensar em novos conceitos sob este mote, mas partindo sempre de uma abordagem cultural, que capturasse a essência dos locais e contribuísse para o desenvolvimento da região.
Território e identidade A exposição, que chegou ao Museu de Arte Popular por convite da Direção-Geral de Património Cultural, foi criada em 2015 para ser apresentada na EUNIQUE – International Fair for Applied Arts & Design, na Alemanha. Em Lisboa, traz acrescentos pensados pelo curador e orientador criativo da exposição, João Nunes. “Fazendo uma atualização desde 2015 até 2018, achámos que era importante explicar o que era o território”, explica Bruno Ramos, responsável pela comunicação da ADX.
Por isso, logo no primeiro núcleo temático – são três, no total – impõe-se um grande mapa do local que “mostra como é que o meio se impõe ao homem” neste “pedaço muito significativo da região Centro, uma das zonas mais montanhosas do país”. Tanto que, no meio da sala, o Museu de Etnologia expôs um dos arados da sua coleção, “recolhido na Pampilhosa da Serra, uma vila deste território. É o único arado da coleção do museu de tração humana, o que explica como é que este território tão íngreme não permitia sequer que os arados tivessem tração animal”, diz Bruno, sublinhando que foi essencialmente com recurso à enxada que as populações foram subsistindo.
Ainda na primeira sala há fotografias destes moradores, “pessoas que conhecemos pelo nome” e que hoje partilham as suas terras com gente nova e projetos distintos, também aqui apresentados e que vão desde a criação de um destino de observação das estrelas neste território (o Dark Sky ADX) até a empreitadas pensadas para proteger o território de ameaças como os incêndios, como é o caso do projeto “Ativismo Comunitário” – em que um grupo de 77 proprietários da aldeia de Ferraria de São João uniu esforços para “replantar e criar uma orla de proteção e subsistência”, liderados por Pedro Pedrosa, um dos novos habitantes, que escolheu mudar-se para aqui há oito anos.
Todos os projetos têm um denominador comum: gerar argumentos para o futuro e afirmarem-se por si só como âncoras para o desenvolvimento. “Aqui, a mensagem que está para trás é a de que é importante ligarmo-nos à terra novamente, não só no sentido de reabilitação ecológica, mas no sentido de que é dessa relação que pulsa a identidade deste território, desta relação entre as pessoas. E é, no fundo, desse ponto que parte aquilo a que podemos chamar cultura. O nosso objetivo é voltar a chamar a nossa atenção para isso, para novas formas de estimular caminhos e pontos de reflexão, que nos permitam ligar isso com outras áreas de geração do valor a partir do trabalho sobre a identidade,” diz Rui Simão, coordenador do projeto, enquanto nos guia para o segundo núcleo temático, que já esteve exposto internacionalmente.
Escolas ao serviço da comunidade E é nessa segunda sala da exposição que podemos encontrar as propostas de nove escolas superiores de Design do país, que foram convidadas a criar novos produtos que refletissem e respeitassem a memória dos locais – propostas que, numa segunda fase, podem ser produzidas e comercializadas.
Alunos e professores viveram por um período em nove destas aldeias e da experiência – em que também colaboraram com ateliês já instalados no território – saíram produtos representativos dos locais como, por exemplo, uma mochila feita de linho, pele, cortiça e pinho inspirada na tradição pastorícia da aldeia da Figueira, na Beira Baixa; um conjunto de peças de cerâmica cujo molde das pegas das garrafas foi feito a partir dos cornos de caprinos – inspirado em Ferraria de São João –, ou o “livro Benfeita”, um livro colaborativo da aldeia homónima em que os habitantes vão costurando páginas com a história de quem lá vive.
Neste núcleo, além das propostas das escolas, há ainda um elemento que salta à vista: as boas-vindas são dadas, simbolicamente, por uma réplica de uma cabra- -charnequeira – uma raça autóctone da região de Proença –, que inspirou vários projetos e se tornou o elemento icónico da exposição. “A cabra-charnequeira também se transformou no ícone do território”, conta Rui Simão, afirmando que há ainda outro ícone que foi possível extrair deste trabalho de largos anos. “A enxada é o outro objeto, é a chave que simboliza a resistência, foi com as enxadas que os homens se fizeram a si próprios e a esta paisagem, em parceria com este animal mais do que com qualquer outro.”
Artesãos e designers Na terceira e última sala, 22 ateliês de crafts e artesãos de todo o país foram convidados a apresentar as suas propostas que, no fundo, refletem o pensamento coletivo sobre este território. As propostas oscilam entre o tradicional, como as capuchinhas (capas de burel) ou as escadas usadas pelos antigos trabalhadores e novas propostas. “Já éramos um grupo antes de entrarmos para este projeto, a maior parte de nós já anda nisto há mais de 20 anos”, conta Alberto Azevedo, um dos criadores. “Queremos defender estes valores identitários, basicamente todos trabalhamos um pouco sobre a cultura portuguesa, por isso dissemos logo um sim retumbante a este projeto.”
Do seu ateliê, Alberto, que trabalha em conjunto com Cristina Vilarinho, trouxe as peças “Alqueire de Luz”. Partindo do formato de um alqueire em madeira criou uns candeeiros encimados por sementes em porcelana que chamam a atenção para a “monopolização da biodiversidade por parte das grandes empresas internacionais”.
“Todos temos uma ligação muito forte com as ADX”, continua Zita Rosa, de Lisboa. “Há 15 anos começámos a encontrar–nos na aldeia de Cerdeira através da Kerstin Thomas (escultora alemã radicada nesta aldeia, da qual chegou a ser a única moradora), que nos juntou para fazer uma galeria ao ar livre na aldeia.”
Zita, ceramista, idealizou com Vasco Baltazar a peça “Lusitudes”. “Quisemos trazer para aqui a saturação dos solos, a falta de pousio. A pausa é fundamental e faz parte integrante do trabalho.” A peça decorativa inspirou-se, simbolicamente, nas forquilhas e nas forraginosas, as plantas usadas para enriquecer os solos. Já o criador Nuno Alves, do Fundão, que trabalha no próprio território das ADX, criou a “Árvore” – um conjunto de três bancos de madeira que “misturam o saber tradicional do trabalho da madeira com a alta tecnologia do laser no topo dos bancos [se colocar os três bancos juntos, terá uma árvore]” , explica Nuno. Os produtos não estão à venda no museu, mas os interessados podem dirigir-se ao site das Aldeias de Xisto para entrar em contacto com os artesãos.
A exposição “Agricultura Lusitana” está patente até ao final do ano – sugerimos que vá com tempo para ler nas entrelinhas: não espere uma exposição-espetáculo, como a de Escher, no mesmo museu. E tenha em mente que esta exposição é só a ponta do icebergue: este campo na cidade quer depois inspirar os visitantes a ir até às próprias aldeias, ver as ideias a germinar no berço onde foram criadas e contribuir para a vitalidade da região. Afinal, “enquanto houver uma luzinha acesa numa aldeia, aquela aldeia não se desagrega, não desaparece”, diz Bruno Ramos – o desejo que, em suma, resume o empenho destas (e de tantas) aldeias do país.