O Brasil tem hoje a forma de uma plataforma continental de plebiscitos. Tudo é o julgamento de uma outra coisa. Não existem decisões inocentes ou processos imparciais. A fé, ou a opinião, são a moeda do reino. O primeiro clímax do clima de plebiscito nacional deu-se no impeachment de Dilma Rousseff, que nunca julgou verdadeiramente as irregularidades na apresentação das contas públicas pelas quais a ex-presidente foi removida do cargo. O segundo apogeu desta ordem cínica ocorreu na quarta-feira, no dia em que o Supremo Tribunal do Brasil ocupou um dia inteiro de emissão em direto na televisão pública para julgar o habeas corpus com que o Lula da Silva contava para esgotar os recursos em liberdade. A jornada acabou mal para o ex-presidente. Lula será preso em breve, talvez mesmo este fim de semana.
Poucos seguiram de perto as 11 horas que demoraram as 11 declarações dos 11 magistrados. Lula, por exemplo, não o fez. Passou horas no edifício da sede dos Metalúrgicos do ABC, em São Paulo, onde iniciou a sua carreira política e onde por estes dias se refugia com os apoiantes em momentos de aperto. Ao início da tarde, de acordo com a imprensa brasileira, o ex-presidente descolou os olhos do televisor. Fizeram-no também as dezenas de apoiantes reunidas no piso do rés do chão. Discutiu o pontapé de bicicleta de Cristiano Ronaldo na Liga dos Campeões, trocou lembranças sobre os dias de greve no período de ditadura militar e disse que o único que o preocupava nesse dia eram as ameaças veladas do comandante do exército, o general Eduardo Villas Boas, que alertou contra a impunidade antes da decisão do Supremo. Antes dos dois últimos votos, quando a decisão já parecia tomada, Lula abandonou a sede sem falar aos jornalistas e apoiantes. Os argumentos jurídicos não importam. Apenas o plebiscito é real.
Lula não foi o único a desviar a atenção do televisor. Os grandes ecrãs distribuídos pelo país serviram acima de tudo como partitura para os manifestantes contra e a favor do ex-presidente saberem em que momentos protestar e celebrar. O país-plebiscito não presta demasiada atenção aos especialistas e magistrados que passam semanas a discordar sobre o processo de Lula e oferecem as suas mais ácidas opiniões nas redes sociais. O caso do tríplex em Guarujá é uma questão de fé, não de processo. A ninguém surpreende que até a agência estatística mais respeitada no país, o DataFolha, propriedade do “Folha de S. Paulo”, conduza sondagens perguntando a opinião dos brasileiros sobre a justiça de um desfecho jurídico. Quando Lula foi condenado em segunda instância a 12 anos e um mês de prisão efetiva, em janeiro, 50% dos participantes consideraram a sentença justa e 43%, injusta. A legalidade é uma matéria de opinião e o país-plebiscito está fraturado quase ao meio. Até Deus tem de responder à sondagem. “Sabe porque choveu?”, perguntava na noite de quarta-feira um manifestante anti-Lula, em São Paulo, em declarações à revista “Piauí”. “Lula tem um acordo com Satanás”, respondia. Alexandre Santos, um dos líderes dos movimentos anti-petistas brasileiros, dava a explicação contrária numa aberta dos céus. “Se Deus não quisesse, ia estar um dilúvio aqui, mas isso” – isto é, a prisão de Lula da Silva – “é o que Ele quer”.
Tornou-se lugar comum dizer que o Brasil se encontra polarizado e que as eleições de outubro deste ano pouco o vão resolver (ver páginas ao lado). Existe, de facto, uma fenda entre a barricada Lula e anti-Lula. De acordo com o instituto DataFolha, a linha tende a acompanhar os rendimentos e escolaridade. Quanto mais pobre e menos escolarizado um indivíduo, mais provável é ele defender o ex-presidente e argumentar que o processo do tríplex que quase certamente o afastará das eleições é uma farsa. Pensar que o processo dos tribunais é um ensaio político contra o herói da classe operária brasileira não é estranho. Afinal de contas, 92% dos cidadãos acredita que a justiça é assunto de rico e trata desfavoravelmente os pobres, de acordo também com o DataFolha.
Mas no Brasil não existe apenas Lula e nem tudo é divisão de classe. Se assim fosse, a tese da polarização vingaria sem dificuldades: de um lado estaria a barricada favorável a Lula da Silva, composta pelos mais desfavorecidos; do outro, a dos anti-Lula, mais abastados. Mas no Brasil não há apenas polarização: existe pulverização. O Instituto DataFolha indica que as mesmas pessoas que lideram as intenções de voto para as eleições de outubro encontram-se nas listas das figuras mais reprovadas pelos brasileiros. Têm, portanto, um eleitorado estanque, indisposto de mudar de opinião. Lula é o terceiro mais reprovado, 40% não votaria nele de forma alguma, mas, mesmo assim, lidera as sondagens com 36%. Atrás dele está Jair Bolsonaro, o político incendiário próximo da extrema-direita, que, segundo o instituto de estatística, recolheria 18% dos votos em outubro. Em todo o caso, 29% dos brasileiros rejeitam-no. Geraldo Alckmin, por sua vez com uns 7% das intenções de voto para outubro, é reprovado por 26% dos brasileiros. O mais consensual que por estes dias há na política brasileira é Michel Temer, o presidente que, desdizendo-se, pensa ainda em candidatar-se. Sessenta por cento dos brasileiros recusa a toda a linha votar nele, é, de todos, o mais reprovado político nacional, 70% afirma que o seu governo é “péssimo” e apenas 6% o defende.