Ainda com o soberbo golo de Ronaldo em Turim a ressoar-nos em eco, a todos, nos ouvidos, lembrei-me de uma história antiga.
Estávamos no Guincho, à beira do mar, sentados para uma grande entrevista que seria enfileirada num número especial da “France Football” dedicado aos Bolas de Ouro. Assim, de súbito, perguntei a Eusébio qual tinha sido o golo que mais prazer lhe dera marcar na vida. Ele respondeu, sem duvidar nem titubear: “Um à Juventus, em Turim, nas meias–finais da Taça dos Campeões.”
Às vezes parece que a História se repete, não é?
Esse jogo de Turim teve lugar a 15 de maio de 1968. Estão quase a cumprir-se 50 anos.
Consultando os jornais da época, a doutrina divide-se. O pontapé fulminante de Eusébio foi a 35 ou a 40 metros da baliza? Curiosamente, por mais que procure, não encontro imagens dele.
Mário Zambujal, por exemplo, um dos enviados especiais a Turim ,fala em mais de 30 metros. E dos defesas e guarda-redes desolados.
Primeiro, as contas da eliminatória: em Lisboa, vitória por 2-0, um golo de Torres e outro de Eusébio.
Em Turim, vitória por 1-0, golo de Eusébio.
O golo de Eusébio no Estádio da Luz é fácil de encontrar por aí, nos labirintos da internet. Ultrapassa um defesa e mete a bola no lado contrário do movimento do guarda-redes. Com a parte de fora do pé, em trivela. Pois é, também muito ao género do primeiro de Ronaldo na última terça-feira.
A Senhora
Juventus: a Vecchia Signora. Velha Senhora: dificilmente se poderia ter inventado uma alcunha mais próxima de um poder dissimulado, de uma eminência parda e escondida.
Juventus: a equipa da família Agnelli.
Os Agnelli dominam a banca, a indústria química, têxtil, de armamento, cimentos e gráficas, num total de mais de 60 mil milhões de dólares; além do mais são os donos da Fiat que, por seu lado, controla a maior fatia da empresa de publicações Rizzoli, que é responsável, entre outros, pela edição do “Corriere della Sera” e do “La Stampa”, dois dos mais importantes jornais italianos.
Em Itália costuma dizer-se, à laia de anedota, que o trabalho do primeiro- -ministro é polir a maçaneta da porta dos Agnelli.
Os Agnelli e a Fiat também são donos da Juventus.
Defrontar a Juventus tem sempre esse toque especial. E o Benfica até tem duas eliminações da Velha Senhora no álbum de recordações.
Em 1965, ainda o campeonato italiano não tinha sido fechado aos estrangeiros, a notícia caiu com estrondo.
A Juventus queria Eusébio!
“Vinte mil contos oferece a Juventus”, diz-se à boca cheia.
Maurício Vieira de Brito, presidente do Benfica: “Fantasia. Nada mais do que fantasia. Já ouvi de tudo: oito, dez, 15, 20 mil contos. Pois eu digo: o Benfica exige 50 mil. E se continuam com essa história, nada me custa passar para cem mil.”
A Juventus começa por desmentir, depois confirma, finalmente revela: tem interesse em Eusébio, mas Eusébio é caro demais; entretanto deixa correr tinta numa jogada publicitária. É um dirigente do clube de Turim, Barone Mazzonis, que confessa a estratégia: “Tenho de reconhecer que sim, que a Juventus gostaria de assegurar o concurso de Eusébio porque sabemos que se trata de um grande jogador. Mas não fizemos junto do Benfica nenhuma tentativa para negociar a sua transferência. O facto de os jornais portugueses, franceses, ingleses, espanhóis e italianos afirmarem que a Juventus está disposta a pagar 20 mil contos por um jogador constitui uma tremenda propaganda para o nosso clube, pois só um clube muito rico e muito poderoso poderia pagar tão importante soma por um futebolista. De mais a mais, é uma propaganda que não nos custa um centavo.”
Mas vamos a 1968 e ao golo que aqui nos trouxe. Stadio Comunale, em Turim, 15 de maio de 1968. Ao minuto 69 há um livre contra a Juventus. Um livre direto, sim, mas ainda longe, muito longe da baliza. Muito longe? Pior ainda: longíssimo. Tão longíssimo que, em relação ao local da falta, a baliza parecia ficar para lá da linha do horizonte.
Favalli, jogador da Juventus, diria no fim do jogo: “Quem tem Eusébio tem a vitória. Jogar contra uma equipa que tem Eusébio é um caso sério. O golo que marcou é um autêntico fenómeno!”
A bola está longe, pois. A milhares de quilómetros de distância do guarda-redes Anzolin, já que ninguém fez uma análise precisa à distância.
Para Eusébio, tanto faz: “Comecei a tomar balanço, muito balanço mesmo, e reparo que, no público, há pessoas a rir, incrédulas. Não acreditavam que eu fosse chutar de tão longe assim. Deviam julgar-me doido. Corri para a bola, chutei com toda a força e ela entrou como uma bala na baliza italiana, sem hipóteses para o guarda-redes. Tiveram de engolir a risota.”
Foi o primeiro pontapé português na cabeça da Velha Senhora. O público de Turim não aplaudiu. Mas engoliu em seco.