Lula da Silva está visivelmente mais magro. Tem a barba aparada e, por estes dias de fim de campanha de 2002, tem também uma equipa de especialistas que lhe garante que desta vez, a quarta, vencerá. «Agora é Lula», lê-se um pouco por todo o lado, como descrevia então Manuel Carvalho, jornalista do Público. Lê-se nos carros desportivos de São Paulo, nas ruas violentas do Rio, no nordeste da fome também. E, sim, é verdade, chegou mesmo a aurora de Lula. Três vezes se candidatou e três vezes perdeu, mas o Brasil está enfim pronto para o seu primeiro Presidente nascido e criado na classe operária.
Fernando Henrique Cardoso está de saída. O seu Plano Real eliminou o pior da inflação, que em alguns momentos ultrapassou os 1000%, criou os mecanismos que a ditadura e a corrupção de Collor de Mello não criaram, mas não corrigiu as mais graves fendas nacionais: as da pobreza extrema e da desigualdade pornográfica. Agora que termina o segundo mandato, que obteve manobrando a Constituição a seu favor, o real está de novo em apuros, o desemprego continua alto, o crescimento é tíbio, a dívida cresce e a energia elétrica falha porque não há água nas barragens. FHC sai da presidência garantindo à BBC que, no Brasil, toda a gente tem o que comer. «A fome atinge maciçamente regiões da África e da Ásia. No Brasil, existia fome quando havia seca e quando não havia programas compensatórios. Hoje, já existem.»
Não existiam. Pelo menos na proporção da pobreza brasileira. Lula demonstrou-o e, por isso, o país ergueu-o a um patamar quase religioso. O Lula emagrecido e enfeitado não falhou o alvo. Era o Lula da «paz e amor». Venceu as eleições de 2002 em todos os estados salvo Alagoas, um bastião da família Collor de Mello. A segunda volta vence-a a toda a linha, apesar do escândalo Mensalão ter revelado que o seu Partido dos Trabalhadores geria um grande esquema de compra de votos. As favas caíram para o PT, não para Lula, e os centros urbanos brasileiros votaram nele com o mesmo entusiasmo que as zonas rurais.
Abandona a presidência em 2011 com taxas de aprovação que hoje desafiam a credulidade. Algumas sondagens atribuem-lhe números norte-coreanos e garantem que nove em cada dez brasileiros defendem a sua presidência. As mais conservadoras sugerem então que 75% do eleitorado o avaliam positivamente. Não há motivos para duvidar delas. Lula da Silva opera sob os seus dois mandatos a maior transformação social no Brasil desde a abolição da escravatura e o mais nítido sucesso político desde que um golpe militar expulsou do poder Pedro II. «Montei uma quadrilha, sim, para tirar 36 milhões de pessoas da miséria», lança o ex-líder brasileiro em finais de 2016, quando responde à acusação de que formou com Dilma Rousseff uma organização criminosa. «Uma quadrilha que criou 22 milhões de empregos formais, colocou milhões de pessoas na classe média.»
A herança da presidência de Lula da Silva é mais fácil de avaliar que as alegadas implicações no processo Lava Jato. Em parte, porque é estatística. Os números são por vezes empolados, minimizados ou ignorados, mas, grosso modo, descrevem a tela de uma presidência transformadora. De acordo com o Banco Mundial, 28,6 milhões de brasileiros abandonaram a pobreza entre 2004 e 2014. Lula ofereceu condições dignas de vida a muitas mais através de um elenco de programas sociais revolucionários. O Bolsa Família, de todos o mais célebre, ofereceu subsídios a dezenas de milhões de pessoas ao longo dos dois governos Lula, levando-o a reivindicar que por sua mão saíram 42 ou 45 milhões de pessoas da pobreza. Sob Dilma, o Bolsa Família chegou a alcançar uns 80 milhões de brasileiros, e a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação afirma que se deve sobretudo a ele a saída do Brasil do mapa mundial da fome, em 2014. No começo do segundo mandato de Lula, praticamente todos os países na América Latina ofereciam as suas próprias versões do Bolsa Família, que exige provas de que os menores num determinado agregado familiar vão à escola ou ao médico, por exemplo, como condição para a transferência do dinheiro. A ONU recomenda hoje aos países em desenvolvimento que apliquem este programa e o estado de Nova Iorque aprovou uma versão sua em 2007. Outros esquemas, como o Pronaf, que apoia a agricultura familiar, o Fome Zero, que ajuda dezenas de milhões de brasileiros a comer, e o Luz para Todos, por exemplo, que leva eletricidade às zonas rurais, modificaram a paisagem brasileira da desigualdade e pobreza extrema. Os rendimentos dos 25% mais ricos do país cresceram 13% desde 2002, de acordo com números do Governo. Os dos 25% mais pobres, por sua vez, aumentaram 45%.
O radical do ‘paz e amor’
Estes foram os anos do Lula consensual. A sua encarnação mais recente, à qual foi forçado ou escolheu, já não o faz lembrar, mas, em tempos, o homem que começou como um sindicalista ostensivamente alinhado com as correntes de Hugo Chávez e Fidel Castro, por exemplo, deu em tempos um passo atrás e ao centro. Convenceu-se da utilidade de ser um candidato para os brasileiros ricos de São Paulo e os pobres nordestinos na campanha de 2002, na qual conseguiu angariar o voto de alguns dos mais célebres resquícios da ditadura militar e dos setores mais radicais do comunismo brasileiro.
Era o Lula ‘paz e amor’, o líder pragmatista que assegurava que os orçamentos continuariam a dar em superavits, sem no entanto esquecer a pobreza e desigualdade. Estava por esses dias enterrado, talvez superficialmente, o Lula da Silva que perdera as três eleições anteriores como o candidato da rutura e das pedras de arremesso às classes altas. O Lula da Silva de 2002 desenhou a quadratura do círculo. Milhões de brasileiros pedem-lhe este ano que o volte a fazer, embora com regra e esquadro diferentes.
Lula aprendeu a seu ritmo o caminho do consenso. A ditadura militar formou-o para o oposto. Chega em 1952 a São Paulo, nas vagas de migração interna que partem à busca da promessa de industrialização. A política de abertura do general João Baptista Figueiredo, no final dos anos 1970, abre o caminho da reivindicação e às primeiras grandes mobilizações sindicais. Lula, que ascendeu com rapidez no poderoso sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, surge pela primeira vez ao país em 1979, discursando a um mar de dezenas de milhares de pessoas numa paralisação que mobilizou, aos olhos da ditadura, um número inaceitável de trabalhadores. Quando falhou o sistema de som, o então líder sindicalista falou em cima de uma secretária, com um megafone. Lula ganhou a greve e também a notoriedade. No ano seguinte seria preso 31 dias (ver texto ao lado). «Eu tinha preparado a categoria para uma guerra, não para uma greve», disse, anos mais tarde.
Em 1980 constitui-se o Partido dos Trabalhadores. Lula não é já a estrela da esquerda brasileira, mas antes de a década terminar, terá ultrapassado nomes históricos da resistência à ditadura. Ganha espaço nas manifestações que reivindicavam eleições diretas, em 1982, e em 1986 tornou-se o deputado federal mais votado em São Paulo. A partir desse momento, será dele a luta da esquerda brasileira. Perde-a, primeiro, contra Collor de Mello. E, depois, duas vezes, contra Fernando Henrique Cardoso, a quem chega a acusar de ser «um cruzado pelos ricos». Quando ascende ao poder, fá-lo numa crise nacional. O Brasil já não consegue esconder as marcas da pobreza, que tentava varrer para longe das câmaras de televisão. Pelos meses da sua chegada ao poder, é costume ouvir-se o truísmo de que o Brasil é o segundo país mais desigual no mundo, apenas atrás da Serra Leoa. Lula corrige uma parte do guião, mas não todo. Os 5% mais ricos no Brasil detêm hoje o mesmo rendimento que os restantes 95% dos brasileiros, de acordo com a Oxfam. Seis brasileiros são hoje tão ricos quanto a metade da população mais pobre. Em 2016, no primeiro ano de governo de Michel Temer, 2,5 milhões de brasileiros regressaram à pobreza. Lula mobiliza ainda a sua imaginação. O evangelho da sua vida política assegura-se disso.