Nelson Mandela teve 27 anos de prisão para aplacar os seus demónios, apaziguar o espírito, renunciar à violência e construir uma ideia política de reconciliação. A mesma que veio a aplicar depois de sair da prisão, em 1990; a mesma que pôs em prática como o primeiro Presidente negro da África do Sul. Conter a sede de vingança, harmonizar inimigos, reconciliar a maioria negra que sofreu com a minoria branca que a fez sofrer. Winnie Madikizela-Mandela não passou pelo mesmo: a sua luta infatigável pela libertação do marido – com quem casou aos 22 anos – teve marcas de violência, sofridas, sobretudo, mas também impostas. Não admira que a sua ideia de uma África do Sul libertada da subjugação feroz do apartheid fosse menos pacífica e incluísse uma certa dose de violência.
«Mandela dececionou-nos. Concordou com um mau acordo para os negros. Economicamente, continuamos de fora. A economia é muito ‘branca’. Tem alguns exemplos negros, mas muitos daqueles que deram a sua vida pela luta morreram sem ser recompensados», afirmou quem um dia disse de si: «Eu sou produto das massas do meu país e o produto do meu inimigo.»
O seu caminho de luta foi sempre mais violento, mais olho por olho, dente por dente – passou pela prisão, 18 meses no final dos anos 1960 (escreveu sobre a experiência no livro 491 Days), foi deportada para uma zona rural em 1976. Nunca desistiu de lutar nem de recorrer à violência quando necessário.
Nos anos 1980 criou um clube, o Mandela United Football Club (MUFC), que era menos uma equipa de futebol e mais uma milícia armada ao serviço da sua vontade. Dentre as várias mortes atribuídas ao MUFC, uma ficou-lhe marcada para sempre como uma mancha infame: o assassínio, em 1988, de Stompie Sepei, um jovem ativista do MUFC de 15 anos, raptado e torturado por ter relações sexuais impróprias com um pastor metodista e acusado de ser informador da polícia.
Jerry Richardson, braço-direito e guarda-costas de Winnie, acusado e condenado a prisão perpétua pela morte de Stompie, implicou a sua líder no caso e chegou a afirmar na Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul: «As minhas mãos estão hoje cheias de sangue porque me disseram para matar e eu faço o que me mandam.»
Richardson confessou o envolvimento em quatro homicídios, mas a comissão investigou 18 mortes atribuídas ao MUFC. Winnie Mandela chegou a ser condenada pela participação na morte do jovem de 15 anos (Richardson garantiu que foi ela quem começou a tortura), mas a pena de seis anos de prisão a que foi primeiramente condenada acabou reduzida em recurso a uma multa de 3200 dólares. Não seria a sua única vez a braços com a justiça. Anos mais tarde, em 2003, seria condenada por roubo e fraude a seis anos de prisão, pelo desvio de 120 mil dólares da Liga de Mulheres do Congresso Nacional Africano (ANC na sigla em inglês), que liderava. Mais uma vez, o recurso favoreceu-a, o tribunal deixou cair a acusação de roubo e reduziu a pena para três anos e seis meses.
Mas mesmo com todas as sombras biográficas, nunca a sua figura deixou de ser vista com respeito dentro do ANC e desde 1994 que foi sempre eleita deputada. Em 2009, quando Jacob Zuma (o ex-presidente que recentemente se demitiu) chegou ao poder, figurou como número cinco nas listas do ANC ao Parlamento sul-africano, sinal de proximidade política que rapidamente haveria de ganhar distância.
Entre o brilho desse dia inesquecível de 1990 em que caminhou de mão dada e punho erguido ao lado do marido, acabado de ser libertado da prisão (divorciou-se em 1996, quando era primeira-dama) e todas as sombras que lhe toldaram a biografia, Winnie Madikizela nunca deixou de ser uma lutadora: «Sim, no princípio tinha medo. Mas não há muitas coisas que eles te possam fazer. Mais do que isso, só a morte. Só te podem matar e, como pode ver, ainda aqui estou.» Até esta segunda-feira, quando sucumbiu à doença, tinha 81 anos.