Ballet. De Leiria para o mundo

Os bailarino sofrem? Sim. Mas isso não os impede de quererem sempre mais e melhor. A Academia Annarella Sanchez, em Leiria, ensina-os, treina-os, motiva-os e o destino trata do resto. Disciplina, trabalho, suor e muita dedicação é o que lhes é exigido. Chegam de vários pontos do mundo e, além de colocarem os tutus e as…

O ponteiro marca as 16h e a Academia Annarella Sanchez, na freguesia dos Marrazes, em Leiria, enche-se aos poucos e poucos de alunos que se preparam para mais um dia de ensaios. Lá dentro, ouve-se a música, sente-se a energia contagiante destes pequenos artistas e, pelos corredores, passeiam dezenas deles. Todos vestidos a rigor: as meninas com um coque na cabeça, collants, saia, sabrinas de ponta, veem-se tutus de várias cores e, é claro, silhuetas quase perfeitas. Os vários rapazes também não passam despercebidos. Utilizam camisolas justas ao corpo, leggins pretas de licra e sabrinas nos pés. Para lá do que sê vê por fora, o mantra parece bem mais simples do que é na realidade: levar o corpo ao limite. Aqui todos são treinados para chegarem um bocadinho mais longe todos os dias. «Superar todos os desafios» é o próprio desafio, diz a professora e dona da Academia, Annarella Sanchez, onde está também inserido o Conservatório de Dança de Leiria. 

Esta escola de Leiria está a tornar-se num dos locais de referência do país e tem derrubado algumas barreiras – como o velho tabu de que o ballet não é para rapazes: é aqui que treina um dos melhores bailarinos do mundo da sua faixa etária, António Casalinho.

António tem 14 anos, chega a treinar mais de 30 horas por semana, mas desde muito cedo percebeu que era isto que queria fazer. «Quando era mais novo sabia bem o que era preciso trabalhar para se ser um bailarino a sério e depois quando entrei para o ballet percebi logo que queria continuar nisto», conta ao b,i. enquanto calça as sabrinas numa sala repleta de espelhos.

Um caminho que nada tem de fácil. Enquanto os amigos brincam na rua, António treina, enquanto os amigos vêem televisão, António treina, enquanto os amigos estão a descansar, António treina. Sai todos os dias da escola a correr para ensaiar e para continuar a ser um dos melhores do mundo. Apesar de tudo, afirma ser um miúdo como todos os outros.

«Como não temos tanto tempo livre para fazer coisas com os nossos amigos, acabamos por aproveitar o nosso tempo ao máximo», descomplica, afirmando que, por saber que o seu tempo é «mais reduzido», criou «horários para cada coisa»
Já as críticas, essas ficam no passado. Os olhares jocosos relativamente aos rapazes no ballet estão totalmente postos de parte e António, que se sagrou no ano passado vencedor do concurso Got Talent, da RTP – conquista que, acredita, ajudou a mudar muitas mentes. «Acho que, e principalmente agora, os portugueses começam a ver o ballet de outra maneira. Começam a perceber que não é só o futebol que existe. Os bailarinos portugueses têm levado o nome de

Portugal muito longe», afirma, sempre com um sorriso colado ao rosto.

Mesmo quando o corpo está a chegar ao limite e, já em grande esforço, estica a perna contra a barra, não há sinais de dor na sua cara. 

O barulho da música vindo de outras salas não o desconcentra. Nem a António nem a Margarita – outra das pequenas grandes promessas da escola. 

Margarita é uma brilhante bailarina de apenas 13 anos, mas nem a pouca idade lhe tira as certezas No seu currículo tem, por enquanto, escrito um único sonho: seguir os passos da mãe e poder também ela ensinar tudo o que sabe aos mais novos.

Já o velho ditado dizia, filho – ou, neste caso. filha – de peixe sabe nadar; e Margarita tem também em si um enorme gosto pelo mundo da dança e a tudo aquilo que a mãe, Annarella, a dona da Academia, conseguiu. Começou a dançar com três anos e também quer, como António, ser bailarina profissional.

«Desde pequena que o meu sonho é ficar com a escola da minha mãe e continuar todo o trabalho que fez até agora. É claro que quero ser bailarina, mas depois quero continuar e ensinar o que sei aos outros», conta Margarita, revelando que o tempo se encarregou da sua paixão pelo ballet. 

Assim como António, Margarita é uma aluna brilhante e diz que o seu tempo livre- que é pouco – dá para conciliar com a vida normal de uma menina de 13 anos. «Organizo-me estando com a cabeça em cada sítio, em cada hora. Por exemplo, estar concentrada na escola é uma vantagem, para depois não ter de estudar tanto em casa». 

Ambos explicam como é passado o seu dia-a-dia e aquilo que lhes é exigido para serem os melhores – desde os treinos aos cuidados com corpo. «Cada um tem de pensar em si, como está a nível de alimentação e corpo. Há que pensar muito bem. A nossa única exigência é trabalhar muito. Isto, claro, se quisermos chegar a algum lado», diz António enquanto olha para Margarita procurando aprovação para o que acabara de dizer. 

As horas de treino são muitas e exigentes: em média, passam seis horas por dia na Academia. Os fins de semana, muitas vezes. também são ocupados com treinos, mas isso não é um problema, garantem. «Estamos aqui para dar o litro e o melhor de nós».

Mas as exigências não estão só na forma de dançar nem no jeito que têm nos pés. Os cuidados com o corpo também são um dos principais focos destes bailarinos. «Temos de ter muito cuidado com a maneira como trabalhamos o nosso corpo. Se não tivermos esse cuidado, podemos mudar totalmente a forma como ele fica no futuro», diz Margarita. António continua: «O facto de treinarmos tantas horas por dia faz com que não possamos fazer outro tipo de exercício físico, como por exemplo, ter a disciplina de Educação Física na escola, uma vez que qualquer lesão pode prejudicar-nos», explica, garantindo que a sua única preocupação é manter-se sempre forte e saudável. 


Bruno Gonçalves

Aprender os passos de dança e executá-los é complicado, ou pelo menos assim todos pensam, mas para António e Margarita – que estão em total sintonia – não há um passo mais complexo do que outro, mas sim tipos de dança mais exigentes que outros. «O pas de deux – dueto rapaz e rapariga clássico – acaba por ser o mais difícil porque não depende só de nós. Nos solos, se errarmos, conseguimos corrigir, já nos duetos estamos sempre dependentes de outra pessoa», explica António. Margarita confirma: «Também acho que não há passos difíceis nem fáceis, depende de cada pessoa, da possibilidade que cada um tem. Para uns pode ser difícil, para outros pode ser fácil. Cada um de nós tem uma forma de estar e de dançar diferentes». 

Ambos já formaram várias vezes par em competições internacionais, já ganharam prémios e estão agora a treinar para outros concursos. O próximo que se segue é em Nova Iorque, onde vão disputar a final do concurso de Paris – onde conquistaram o primeiro lugar -, o Youth America Grand Prix (YAGP). Quanto a previsões de futuro, Margarita e António tencionam ficar, para já, em Portugal, mas António não exclui a hipótese de ir para fora. «Por agora sinto-me bem onde estou, sinto que aprendo bem aqui e que ainda devo ficar mais uns tempos». Talvez quando for mais maduro e tiver segurança total, se aventure lá fora para «procurar novas companhias». Por agora, resta treinar muito e conquistar mais prémios ao seu já exemplar palmarés.

O BALLET, AS BOAS NOTAS E A DISCIPLINA EXIGIDA 

Annarella – professora e dona da Academia -explica como todo este projeto foi desenvolvido ao longo dos anos e como soube separar as pessoas que queriam seguir o ballet como profissão e os que estavam ali apenas por diversão. As exigências são, garante a cubana, muitas. Enquanto conversamos nos corredores da Academia, Annarela conta o que é preciso para se ser o melhor: disciplina. «É necessário ser-se muito exigente. É preciso ter muita disciplina para fazer destes alunos excelentes bailarinos», diz. 

«Temos muito bem estabelecido quem dança por divertimento e quem quer isto para profissão. A entrega de todos os professores, dos pais e dos alunos torna tudo possível», conta com orgulho, indicando que são estas as razões que já a tornaram num ícone de sucesso a seguir no mundo da dança. Hoje, esta professora de ballet pode encher o peito de orgulho por tudo o que conquistou. Olha para cima, respira fundo e continua. «É preciso querer muito isto. Querer acima de tudo. É preciso muito trabalho diário, porque por muito que se tenha um talento, se esse talento não for trabalhado e aperfeiçoado, as pessoas não chegam a lado nenhum». Mas além de toda a dedicação dos alunos, a Academia conta com outras ajudas. «Temos uma nutricionista a trabalhar connosco, temos uma fisioterapeuta, uma professora de pilates e tudo isto é essencial para que eles possam também ser disciplinados nesse sentido. Mas não é só para serem magros», diz enquanto dá uma gargalhada. «É também para que tenham força e resistência», termina. 

Os ponteiros do relógio passam, mas a música não pára e a conversa continua. Entramos na sala onde decorre um ensaio e, nesse momento, o olhar divide-se: a sala enche-se quase tanto de raparigas como rapazes. E aí nota-se o que António explicou: o preconceito estava ultrapassado. «Aqui no Conservatório há pelo menos 14 rapazes inscritos, depois no ballet, só para se divertirem, há cerca de oito alunos», conta Annarella, garantindo que há cada vez mais rapazes a entrar neste mundo.

Sexos à parte, o que verdadeiramente interessa é incentivá-los para que nunca desistam dos seus sonhos. «Motivá-los a participar em concursos, a mostrarem que são bons é muito importante. E eles gostam. Tentamos sempre acompanhá-los nestas jornadas», conta Annarella. «O corpo deles está preparado para tudo, ou praticamente tudo. Os treinos diários e a motivação são meio caminho andado para serem os melhores. É isto que nós fazemos aqui, mas nunca os deixamos desistir de nada», diz a professora, explicando que os estudos não ficam em segundo plano e que conseguiu, em conjunto com a Escola Secundária Afonso Lopes Vieira, encontrar uma forma viável de os alunos não deixarem a escola para trás.

JUNTAR DIFERENÇAS, CONSTRUIR FUTURO

Sendo o ballet uma forma de arte tão exigente, foi preciso arranjar uma alternativa para que os alunos da Academia mantivessem também o seu foco na escola. Nesta altura, surgiu uma ideia: o ensino articulado. A solução, uma parceria com a Escola Afonso Lopes Vieira, só traz vantagens, garante a professora de dança. E não fala unicamente de alunos portugueses.

Pelo Conservatório passam alunos de todos os pontos do mundo – desde Espanha a Macau –, e o protocolo acabou por ser formalizado pela mão do Ministério da Educação. 

O ensino articulado «dá a possibilidade de os alunos não terem, por exemplo, determinadas disciplinas. A escola reduz a carga horária e permite que eles tenham apenas as manhãs ocupadas com a escola e depois, mais ou menos a partir das duas e meia da tarde até às seis e meia, focam-se na dança», explica Annarella. Desta forma, «os pais destes jovens têm a segurança de que os filhos continuam a estudar».

A opinião do outro lado da parceria é a mesma. Pedro Biscaia, diretor da Escola Secundária Afonso Lopes Vieira, garante que todo este protocolo foi uma «questão de oportunidade» e que as vantagens são muitas para ambas as partes. «Somos uma escola periférica e a Annarella resolveu instalar-se a cerca de 20 metros, por isso pensámos que podíamos transformar uma dificuldade – de ambos-, numa vantagem», começa por contar. «Por exemplo, um pai de um dos alunos que vivesse em Leiria teria de andar a transportar o filho entre escolas, para o ballet, de um lado para o outro, preocupado com horários, etc. Por outro lado, interessava-nos captar novos públicos, não apenas de um meio suburbano, mas alunos que normalmente são disciplinados, que sabem lutar por objetivos. Portanto, tínhamos toda a vantagem em captar esses mesmos alunos para cá», diz o diretor. 

Todos os alunos que estão inseridos nesta parceria e que frequentam a Academia da Annarella estudam na Afonso Lopes Vieira. Sobre estes, o professor só tem elogios. «São alunos muito determinados, disciplinados e bons alunos. A Câmara Municipal de Leiria distingue, anualmente, os melhores alunos de cada ano e de cada curso. Da nossa escola, metade dos alunos que foram indicados, eram alunos da Annarella», revela o diretor. 

«Os miúdos que estão nesta situação e que estão longe de casa têm, todos eles, um caráter, uma resiliência … é positivamente contagiante para os outros alunos da escola. Sabem todos para o que vêm. Têm um objetivo e levam-no em em frente. São miúdos brutais», diz o diretor com orgulho do que a escola conseguiu ao fim de dois anos a «lutar». «Foi preciso lutar muito para conseguir isto em termos burocráticos. Este é um conceito inovador, tivemos alguma colaboração do Ministério da Educação – que apreciou esta ideia –, mas desde a opinião positiva de um secretário de Estado até formalizar as coisas em papel foram precisos dois anos. Tivemos uma luta muito grande», diz, sublinhando a crítica. 

Um projeto de sucesso com provas dadas de que o ballet pode mesmo ser uma ferramenta para o sucesso dentro de uma sala de aula – afinal, a concentração que é necessária para ir em busca da perfeição também se treina.