Em 2002, os Dead Combo imaginaram a banda sonora de uma Lisboa em mutação. Quinze anos depois, são o espelho de uma cidade em rodopio.
Este é o álbum em que os Dead Combo são mais pessoas.
Pedro Gonçalves – O grande responsável por isso foi o [produtor] Alain Johannes. Dantes, gravámos juntos guitarras, contrabaixos, etc. E depois no fim chamávamos o [baterista] Alexandre Frazão. Ou seja, todo o arranjo era feito em função dos instrumentos centrais e a seguir acrescentávamos camadas. Desta vez, foi o inverso. Começámos a gravar os três juntos, logo com bateria.
De onde partiu essa necessidade de expansão?
PG – Os outros álbuns todos foram produzidos por nós. Por mais voltas que se dê e malabarismos que se faça, é uma limitação. Então pensámos: “’bora arranjar alguém que nos leve por caminhos que não sejam óbvios”. Desafiarmo-nos. Ter uma voz exterior.
Tó Trips – E uma experiência diferente. A identidade que criámos é uma baliza e é fixe trazer alguém que nos liberte dessas amarras e nos traga outros processos.
Nos concertos, já era comum apresentarem-se com bateria. Serviu-vos de barómetro?
PG – Já há algum tempo que falávamos da hipótese de ter um baterista que fosse o terceiro elemento fixo da banda.E estas vontades todas, com o tempo ganharam forma. O primeiro concerto de sempre que demos até foi com convidados.
Como é que aparece o Alain Johannes?
PG – Gravámos seis canções no verão de 2016, com o Mick Trovoada nas percussões, e encostámos o material à boxe. Quando fomos para estúdio, achámos que era fixe ter um produtor. Já tínhamos entrado em contacto com o Alain porque ele já tinha gravado a voz do [Mark] Lanegan (convidado em “Desassossego). Gravámos em Lisboa com ele no [estúdio] Namouche.
Apesar de a matriz dos Dead Combo ser instrumental, já tinham trabalhado com o Camané, por exemplo, a participação do Mark Lanegan é marcante. Por ser quem é e por interpretar Fernando Pessoa.
Tó Trips – E por ser cantado. As nossas colaborações costumavam ser spoken word.
PG – É a primeira vez que num disco nosso assumimos alguém a cantar. É quem é, uma das vozes mais icónicas das últimas décadas na música popular, e depois surgiu a ideia do poema do Pessoa. Achámos todos que fazia sentido. Até foi fácil de mais (ri-sos). Entrámos em contacto com ele e estávamos à espera de receber uma resposta do manager. E não, era ele. “Claro, conheço os Dead Combo. Sou fã. Conheço o Fernando Pessoa. Excelente ideia”. Até li o mail três vezes.
A tentação foi convidá-lo para gravar mais?
PG – Sim, claro. A vontade existiu mas não fazia sentido fazer um disco só cantado por ele.
TT – Normalmente, estas pessoas aglutinam o que é dos outros.
PG – Pois, uma voz toma conta da canção.
Vão trazê-lo a Paredes de Coura.
PG – Sim, nunca mais é Agosto (ri-se).
Ficaram com vontade de repetir a experiência com outras vozes?
PG – É o que o Tó diz. Fizemos a reza de nunca ter ninguém a cantar. Ao usares uma voz, estás a marcar demasiado a canção dessa forma por aquilo que diz. A nossa grande vantagem é não termos voz. Há uns anos, tivemos a ideia de fazer um disco que era “As Divas do Bairro”. Convidávamos pessoal amigo para fazer um disco com pessoas a cantar e nós a tocar. Eventualmente se fosse assim – um ovni no meio da nossa discografia – talvez fosse sentido.
O “Odéon Hotel” também é o vosso álbum mais permeável a linguagens.
TT – Sim, pela vontade de arriscar dentro do que já fizemos. É o disco menos português mas os portugueses também estão menos portugueses do que há uns anos. Cada vez mais se fazem coisas cá que são válidas em qualquer parte do mundo. Quando fazemos as coisas, não pensamos muito. Depois de feitas, racionalizamos. Acho que é um disco de hoje dentro do nosso universo. Mais globalizado mas com a nossa identidade, construída ao longo do tempo. Baliza-nos mas queremos sair disso.
PG – Também foi uma opção. Aqueles fadinhos que costumamos gravar. Tínhamos outras canções que ficaram de fora. Queríamos ser menos óbvios. A portugalidade existe mas está mais diluída. É o português no meio do chinês, do americano, do indonésio…
O hotel remete para a viagem. É um lugar onde se fica, não se está. E também para o que está a acontecer com a turistificação de Lisboa.
PG – Sim, mas foi coincidência. As fotos [de promoção] foram feitas no antigo Cinema Odéon [na rua do Condes, perto do Hard Rock Café], que agora está em obras, mas ainda estava em ruínas. E depois veio a ideia do hotel, que é um sítio de confluência de origens e extratos sociais. Odéon significa casa da música.
TT – É como no “Lisboa Mulata” (2011). A guitarra da mãe do Pedro entrou nas filmagens. Como não ligamos muito aos nomes, temos um problema que é arranjá-los. Temos tido sorte porque há prazos-limite e conseguimos sempre encontrar um. Normalmente, os hotéis com história até são aqueles onde viveram pessoas. A Beatriz Costa no Hotel Tivoli e aquela malta toda no Chelsea Hotel (Bob Dylan, Charles Bukowski, Janis Joplin, Patti Smith, Leonard Cohen, Iggy Pop).
PG – Aquilo que está a acontecer em Lisboa é um pouco como a nossa música. Passas sempre ao largo de um estilo qualquer.
TT – Tem a ver com o que se passa hoje. Já não é a mesma Lisboa dos primeiros discos dos Dead Combo. É outra cidade. Para o bem e para o mal. A Lisboa do meu pai também não foi a mesma que a minha.
No “A Bunch of Meninos”, de 2014, a Lisboa atual ainda era um embrião.
TT – Os nossos discos até acompanham essa mudança.
PG – Na altura do “Lisboa Mulata”, a cidade estava a abrir-se aos emigrantes e as pessoas de outras nacionalidades, que não só os milionários.
E é quando se começa a falar de uma afro-Lisboa que sempre existiu.
TT – Exato, ela estava lá mas ganhou expressão, contagiou a cultura e a cidade. Lisboa agora está arranjada, e isso é bom, mas o lado mau é os portugueses não conseguirem aguentar-se cá. O que me preocupa não sou eu, são os meus filhos. Uma cidade vive da malta nova, não só a que vem beber copos e divertir-se, mas também aquela que faz acontecer. Não sei qual é a ideia para isto.
PG – Este também é um momento lixado porque é o da viragem. Se calhar, daqui a uns anos o Bairro Alto vai deixar de ser o Bairro Alto. Mas uma cidade é um organismo vivo. Tens sempre zonas onde a malta mais nova se junta com rendas mais baratas. A seguir, vêm os investidores e compram mais caro…
TT – Como aconteceu em Nova Iorque com East Village e Brooklyn…
PG – Está tudo em mutação. O problema é que falta uma visão exterior. Não há ninguém de helicóptero a ver o que se passa. Preocupa-me que esta cidade esteja a ficar igual a todas as cidades em que toda a gente vende o mesmo. Lisboa tem montes de coisas únicas. O Trevo e os mil Trevos que há aqui, em Madrid não há. O pessoal está tão deslumbrado com o turismo – que tem as suas vantagens – mas é importante não perder o pé e deixar que os símbolos que fazem a identidade não desapareçam.
O Tó saiu de Lisboa e foi para a Margem Sul.
TT – E sempre disse que não deixaria Lisboa mas já me queimei várias vezes com esse fogo.
“[Este disco] tem a ver com o que passa hoje. Já não é a mesma Lisboa dos primeiros discos”
“Preocupa-me que esta cidade
esteja a ficar igual a todas
as cidades em que toda a gente vende o mesmo”
============805 fotonoticia_txt (6408617)============
A linguagem de banda nunca foi estranha aos Dead Combo mas “Odeon Hotel” é o álbum em que os Dead Combo crescem para além dos ombros de Tó Trips e Pedro Gonçalves. E o menos português, apesar do “Faduncho” com que é rematado