A Commonwealth pode assumir hoje com mais nitidez as características de objeto transicional que com muita dificuldade vem disfarçando desde a sua inseminação. Convocamos o conceito do pediatra e psicanalista Donald Winnicott com intenção. Da mesma maneira que o cientista britânico considerava, há uns 70 anos, que as crianças conseguiriam as suas primeiras independências substituindo a mãe por um objeto querido, como um peluche, por exemplo, também por essa altura o moribundo Império Britânico trocava as colónias gradualmente emancipadas pela aparência de liderança de uma organização que nunca, verdadeiramente, suprimiu a verdadeira urgência materna: a da relevância.
A mãe abandona hoje a liderança da Commonwealth. Isabel II herdou a liderança do pai, Jorge vi, não porque era obrigatório – não é –, mas porque era inevitável. A Commonwealth, no ano da sua coroação, 1953, formava-se ainda pelo grupo original composto pelo Reino Unido e sete antigas colónias. Os oito países pretendiam reforçar os laços comerciais e diplomáticos através da língua e história comum, e, por essa altura, Isabel era chefe de Estado de praticamente todos – apenas a Índia escolheu o fim da monarquia. A Commonwealth de hoje, no entanto, é muito diferente. Cresceu de oito para 53 países e muitos não são ex- -colónias britânicas. Moçambique é exemplo disso. A organização nascida do esqueleto do império, por outras palavras, evoluiu para um corpo global distante das heranças da coroa. A sucessão de Isabel II não é nítida. O cargo não é hereditário e a sua monarquia não tem alcance absoluto.
Isabel é apenas chefe de Estado de 15 dos 53 membros mas, em todo o caso, quer que seja o seu filho, o príncipe Carlos de Gales, a receber a liderança da organização. A imprensa dá-o praticamente como garantido. O cargo é simbólico e a verdadeira chefia é conduzida pelo posto do secretário-geral, atualmente Patricia Scotland, nascida na Dominica, mas criada em Londres. O simbolismo, no entanto, é o prato principal de hoje. Ao escolher Carlos, Isabel parece revelar o segredo envergonhado da Commonwealth, como escreve a colunista Afua Hirsch, no “Guardian”: “Quem, para além do herdeiro ao trono britânico, afinal de contas, está mais qualificado para liderar esta manifestação contemporânea do império?”
Carlos governará uma instituições em segundas núpcias no Reino Unido. Na campanha do referendo ao Brexit, os apologistas do divórcio apresentaram a Commonwealth como prova de que o país não precisa de estar na comunidade europeia para preservar os laços globais. A organização, parcialmente ignorada pelas populações que a integram, surge hoje não apenas como um substituto válido para Bruxelas, mas como um concorrente melhor. Os números, afirma-se, não mentem: a Commonwealth abrange 2300 milhões de pessoas, o seu mercado potencial chegará ao bilião de dólares (milhão de milhão) em 2020 e, para o seu funcionamento, os britânicos pagam por ano 60 cêntimos, contra os 60 euros que dão para a UE.
As contas estão sensivelmente certas, segundo Philip Murphy, diretor do Instituto dos Estudos da Commonwealth, de Glasgow. As aspirações, não. O Reino Unido, afirma, exporta hoje 9% dos bens para os países da Commonwealth e 44% para a UE. O comércio na primeira organização é ainda restrito e a Índia, a grande potência económica, quer que Londres, embrenhada num furor antimigração, levante obstáculos à circulação de pessoas para autorizar novas relações comerciais. A organização, diz Murphy, é barata por razões evidentes: não tem instituições fortes, não produz acordos vinculativos, não tem mão nos assuntos internos dos seus membros e abdica até de ideais comuns – 36 dos 53 países criminalizam a homossexualidade, por exemplo. Murphy considera-a “uma instituição irrelevante embrenhada no seu luto imperial”. “Está fora de dúvida que a Commonwealth não conseguirá resgatar o Reino Unido da ferida nefasta e autoinfligida que é o Brexit. Qualquer sugestão em contrário apenas servirá para levar da organização quaisquer vestígios de credibilidade que ainda possui.”