Primos?

Nos seus romances, John le Carré baptiza essa ligação entre os dois países com menos aprumo. Chama-lhes, simplesmente, «os Primos»

Não é novo o pensamento que reconhece que a «paz kantiana» vivida na Europa seria impossível sem a «conta hobbesiana» paga pelos Estados Unidos. Na Folha de São Paulo, João Pereira Coutinho evidenciou-o, escrevendo que convém «não esquecer os mísseis apontados a Moscovo». Mais do que a irascibilidade do sr. Trump, a primeira preocupação deste lado do Atlântico deve ser essa: se o Presidente dos EUA é contra o pagamento de uma «conta hobbesiana», o que acontece à «paz kantiana» no continente europeu?

É uma boa questão. Esta semana, a visita de Emmanuel Macron à Casa Branca tem sido dada como folclórica e até exagerada – mas não deixa de simbolizar uma possível resposta. As fotografias de mão dada, a ‘junckeriana’ troca de beijos, o chapéu feito à medida de Melania, a caspa no ombro de Macron revelada ao mundo pelo seu anfitrião, o sotaque do francês enquanto discursava ao Congresso e o choque dos desatentos: como é que dois homens antagónicos foram unha com carne durante uma visita de Estado inteira? Nas despedidas, ambos usaram o termo «special relationship», habitualmente associado à dita relação especial entre os Estados Unidos, não com a França mas com a sua ancestral metrópole – o Reino Unido. Nos seus romances, John le Carré baptiza essa ligação entre os dois países com menos aprumo. Chama-lhes, simplesmente, «os Primos».

O namoro desta semana entre Macron e Trump veio recordar idênticas familiaridades entre Washington e Paris, culminando na tal usurpação do termo («relação especial») antes atribuído a Washington e Londres. Afinal, foi assim com Churchill/FDR, Thatcher/Reagan, Blair/Bush e Cameron/Obama. Apesar da visita de Theresa May à Sala Oval ter corrido algo melhor que a primeira visita de Merkel, também não tem sido propriamente fiel à tradição enumerada. E o relacionamento entre a Europa e a América, que sempre beneficiou do Reino Unido como interlocutor, pode ter em Macron uma alternativa – isto é, um candidato a «Primo». Esta visita serviu de lançamento a essa candidatura.

O The Guardian, perito em capitanear o óbvio, considerou-a prova de Macron «querer liderar a Europa». O The Economist, letal, criticou a forma como o Presidente francês se comprometeu com um novo acordo com o Irão – e um diplomata admite a esta coluna que esse voluntarismo se arrisca «a abrir uma caixa de Pandora». Eu não sou um analista de relações internacionais, mas gosto de políticos com sentido de História. Acho-o fundamental para quem ambiciona ser mais do que um gestor de conjunturas. Do primeiro ao último dia, Emmanuel Macron mostrou ser um exímio conhecedor da História que une a França aos Estados Unidos da América – das suas revoluções aos seus esforços militares.

Ironicamente, a revolução francesa terminou em tirania e a independência americana, pelo contrário, garante eleições regulares há mais de duzentos anos. Não querendo declarar uma inversão desses pólos, há que constatar simbolismos.

É improvável que o projeto de Macron para a Europa tenha futuro sem os valores liberais que durante séculos uniram os povos de língua inglesa. O Brexit e a crise de lideranças britânica não são desculpa para esquecer esses valores. Se é por reconhecer a sua importância que Macron se presta a aturar Donald Trump, o folclore tem todo o meu apoio. No fim do dia, alguém tem de pagar a «paz kantiana». Especialmente quem quiser liderá-la. Ou mantê-la.